UMA HISTÓRIA ARGENTINA
SERGIO HORVATH, RESISTE DESDE MUITO TEMPO NA ARGENTINA – DIANTE DE UM NOVO MOMENTO, CRÊ EM ALGO DE BOM PARA GENTE COMO ELE, OS PERIFÉRICOS SOBREVIVENTES
Quero lhes contar a história de um argentino, mas não a de um argentino qualquer e sim, a de um típico de suas entranhas. Desses, diria, encruado, incrustrado nos seus ditos mais arraigados sentidos sociais, no que isso pode ter de mais relevante. O conheci anos atrás e a empatia foi imediata. Conto como foi. Exatos três anos atrás estávamos num grupo percorrendo o bairro de La Boca, zona suburbana de Buenos Aires, local turístico e também por ser onde está localizado o campo La Bombonera, do time de futebol do Boca Juniors.
Horário do almoço, um professor ali conosco, havia morado na cidade por quase um ano na cidade e nos indica um lugar fora da zona turística para a refeição. Todos aceitam e ao andarmos algumas quadras, meio a meio entre a zona principal de turismo e o campo do Boca, chegamos a uma edificação outrora imponente, mas no momento um tanto deteriorada. Um galpão que antes havia abrigado um frigorífico, agora o fazia para um Mercado Popular, o antigo Marcado de la Boca, todo ele para atender os locais, nada turístico. Como muitos outros, por ali tem de tudo um pouco, desde lojas com comércio de roupas, brindes, sapatos, serviços variados, como muitos profissionais, alfaiates, eletricistas e alguns artistas plásticos, além de restaurantes.
Quero lhes contar a história de um argentino, mas não a de um argentino qualquer e sim, a de um típico de suas entranhas. Desses, diria, encruado, incrustrado nos seus ditos mais arraigados sentidos sociais, no que isso pode ter de mais relevante. O conheci anos atrás e a empatia foi imediata. Conto como foi. Exatos três anos atrás estávamos num grupo percorrendo o bairro de La Boca, zona suburbana de Buenos Aires, local turístico e também por ser onde está localizado o campo La Bombonera, do time de futebol do Boca Juniors.
Horário do almoço, um professor ali conosco, havia morado na cidade por quase um ano na cidade e nos indica um lugar fora da zona turística para a refeição. Todos aceitam e ao andarmos algumas quadras, meio a meio entre a zona principal de turismo e o campo do Boca, chegamos a uma edificação outrora imponente, mas no momento um tanto deteriorada. Um galpão que antes havia abrigado um frigorífico, agora o fazia para um Mercado Popular, o antigo Marcado de la Boca, todo ele para atender os locais, nada turístico. Como muitos outros, por ali tem de tudo um pouco, desde lojas com comércio de roupas, brindes, sapatos, serviços variados, como muitos profissionais, alfaiates, eletricistas e alguns artistas plásticos, além de restaurantes.
Bem no fundo, um restaurante popular, o Black Café, bem rústico, com comida a preços populares e tudo feito por um casal, Luiz e Teresa. Comemos por ali e o mesmo professor que se dizia refinado na hora da alimentação, não resisti e lhe perguntei: “Te vejo reclamando da comida em muitos lugares, mas aqui não e a simplicidade é a marca desse lugar”. Ele sorri e me diz: “Exijo nos lugares onde propõe algo e não cumprem, aqui não. Aqui a comida é essa, simples, feita pelo casal e a proposta é essa, não inventam nada que depois não conseguem cumprir”. Gostei e seguindo o mesmo lema nos esbaldamos. Só para dar um pulo lhes digo, voltei nos anos seguintes e já nos tornamos amigos de todos por lá. Não só amigos dos donos do reaturante, como de outro estabelecimento ali ao lado desse, o Local 70, ou como diríamos pro aqui, o Box 70, uma mistura de sebo, galeria de arte, livraria e loja de antiguidades. A história a seguir é de um dos proprietários desse lugar.
Quem me conhece sabe que, não me seguro diante de sebos, estejam onde estiverem e mesmo que tenha dificuldades na língua, a imediata identificação com esses lugares me faz se aproximar e puxar conversa. Foi o que fiz, vi inicialmente alguns CDs de música argentina e quis vê-los. Foi quando conheci a dupla de proprietários, Sergio Horvath, 56 anos e Marcelo Martin, 57 anos, ambos artistas plásticos, pintores e artesãos. No primeiro ano arrematei uns 15 CDs, vendidos por um preço simbólico, muito baixo, talvez pela grande diferença existente entre o valor do peso dele e do nosso real. Mais que a compra, conhecer a ambos, kirchneristas e peronistas, militantes de esquerda e naquele momento revoltados com a política neoliberal aplicada no país pelo presidente Maurício Macri. Conversamos muito, trouxe comigo muitos endereços virtuais e fiquei de voltar. Nas prateleiras, estantes e do lado de fora, posters e cartazes sobre o posicionamento de ambos. Os vi depois num outro grupo, todos sentados nas mesas do bar/restaurante confabulando sobre atividades políticas.
Ambos não me saíram mais da cabeça, mas só voltei a ter novo contato no ano seguinte, no mesmo período quando por lá voltei. Desta feita somente eu e Ana. Almoçamos novamente e retorno ao Local 70. Converso novamente com eles dois, compro mais CDs e me dizem mais sobre as dificuldades todas de manter uma pequena e modesta galeria nos fundos de um Mercado Popular numa zona onde praticamente não circulam turistas. Na conversa, sempre aquele algo a mais sobre política e o desastre do neoliberalismo predatório na Argentina. Percebo o quanto gostam de Lula e clamam pelo retorno da denominada política do Pátria Grande. No espaço começo a perceber melhor como vivem. Ambos pintam e Sergio, o que mais permanece no lugar, também produz peças de artesanato, esculpindo barcos de madeira e depois fixando uma pintura ao seu estilo, bem colorida. Vivem disso, da venda dos livros, LPs, CDs e antiguidades da loja e do que produzem. Divulgam ao seus modos e jeitos, percorrem feiras variadas na cidade e usam o local como ponto de apoio, o endereço fixo.
Novamente me vou e neste ano, na visita anual para apresentar trabalhos acadêmicos, entre julho e agosto, acabamos não almoçando no restaurante. Compro poucos CDs e retorno dias depois, mas encontro o local fechado, ambos batalhando algo pelas ruas. Ouço do Sergio, ambos estarem envolvidos na eleição de Alberto Fernández e Cristina Kirchner, compromissos pela cidade e pouco por ali. Nesse ano retorno para trabalhar como jornalista na eleição, entre 25 a 29 de outubro e é claro, levo amigos para almoçar no restaurante, conhecer o Local 70 e seus dois artífices. Não encontramos com Marcelo, mas sim Sergio e desta feita, além dos CDs comprados, indicações preciosas da nova música argentina, tangueiros de uma nova geração. O convidamos para almoçar conosco e ele nos conta algo mais sobre suas atividades. Primeiro nos aponta o teto do Mercado e diz sobre a pintura ali existente. É dele e mesmo após o incêndio no local anos atrás, a mesma não teve como ser retocada, mas parte ainda intacta e resistindo ao tempo. Além de tudo, muralista.
Sergio é pai de um jovem, esse já se safando sozinho, com suas próprias forças, ele separado e diante das dificuldades optou anos atrás por ocupar um pequeno quartinho nos fundos do Mercado, ao alto, acima dos banheiros públicos. Lá, num canto sua cama e noutro o seu estúdio, onde trabalha, pinta e produz a maioria dos seus trabalhos. Quando não está no apertado local, está na loja ou das ruas, participando de feiras, eventos e também atuando politicamente. Vida espartana, sua vida hoje é munida pela esperança. Descrente de tudo o que possa vir de modelos como os praticados por Macri, Piñera, Lenin Moreno e Bolsonaro, alia sua vida profissional, com uma intensa participação no combate a esses que, decididamente atuam contra pessoas como ele. Ciente disso, não se intimida em demonstrar isso no que está exposto na loja. Num dos cantos, algo sobre a luta pelo Lula Livre, noutro sobre o gato Macri e as agruras da desunião dos países latinos. Desta feita, eleição no dia seguinte, muita propaganda política, o que sobrou de um intenso trabalho realizado na região.
Falamos de tudo, de política local, da regional, literatura, Buenos Aires, Cristina e Alberto, além das agruras naturais de quem, como ele, deu muito murro em ponta de faca, pagou o preço e hoje está ali, num local pouco frequentado, onde seu trabalho está um tanto escondido, oculto e sem grandes possibilidades de exposição. Faz o que pode, com suas próprias pernas e recursos. Não reclama, trabalha muito, se vira e não para um só segundo. Me diz que, quando me deparo com o box fechado, sinal de estar tentando algo pela aí. Essa sua vida, uma atuação política que espera com o novo Governo, traga algo de novo, um olhar diferente para todos os como ele, vivendo em condições cheias de restrições e privações. Olha para tantos outros à sua volta e isso o entristece, pois os que foram morar nas ruas hoje representam uma parcela significativa da população. “Como posso esperar que consumam arte, o que faço, o que sei fazer, se o dinheiro que se ganha hoje mal dá para suprir as necessidades básicas do povo. O turismo é o que nos salva, mas também não está como antes”, diz. Atento a tudo, sabe que a reviravolta não será rápida, mas lenta e gradual. Aguentou-se até agora e não será nesse momento, quando o que tanto lutou para conseguir foi alcançado, irá desistir. Sabe ter que aguentar um pouco mais e para tanto olha firme para nós, nada resignado, nos abraça na despedida, está ao nosso lado contra gente como Bolsonaro e tudo de ruim representado por políticas onde a miséria é o resultado final. Mesmo nas dificuldades sentidas ali no dia, sabe muito bem que, não basta a Argentina mudar de rumo, sendo também relevante o Brasil fazer o mesmo, o Uruguai não se deixar levar pelo discurso conservador e assim por diante. Trocamos cordiais abraços e volto pras ruas ciente de que, esses são os valorosos deste mundo.
OBS.: Essa história continua, pois a de Luiz e Tereza, os donos do restaurante ali na frente do Local 70, o Black Café, eu conto em detalhes nos próximos dias. Na junção das duas, algo dos que lutam em La Boca.
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