UMA VILA, ALGUMAS DE SUAS HISTÓRIAS E PERSONAGENS
A Vila Dutra, também conhecida como Curuçá é um local de população eminentemente ferroviária. Toda sua história está entrelaçada com a da Noroeste do Brasil, a maior empresa ferroviária a atuar na cidade, tanto que levantou esse agrupamento de casas, com o intuito de abrigar seus funcionários. O fez num ponto, para a época, distante do centro de Bauru, mas fornecia condução praticamente gratuita para todos, num trem urbano denominado de “Coréinha”. Tudo por lá ainda lembra um pouco a ferrovia, principalmente suas construções mais antigas e nas histórias dos seus mais antigos moradores, quase todos aposentados da ferrovia. Fui conviver com isso por alguns dias quando da realização de um evento no bairro, o “Café da Tarde Ferroviário”, realizado numa quinta, 18/12.
Exatamente por abrigar a maior concentração de ferroviários da cidade surge a idéia de promover algo por lá e o melhor local, talvez o mais abrangente, o salão paroquial da Igreja de São Pedro é o escolhido. Padre Rosinaldo cede o espaço com uma recomendação: “Não fiquem só nisso, pensem neles com solução de continuidade”. Isso marca e fica como algo a não ser esquecido. E vamos conhecer o salão e conviver com as pessoas que nos auxiliariam. Procuramos de início um líder comunitário dos mais conhecidos por lá, Jesus Adriano dos Santos, morador do local há mais de 30 anos, ferroviário aposentado e daqueles que com orgulho diz ter se casado naquela igreja. “Minha vida eu passo aqui. Conheço todos. Gostei da idéia do evento e quis ajudar. Tínhamos essa idéia e quando a vi encaminhada, pensei logo na felicidade de nossa comunidade em relembrar um pouco do passado de cada morador”, relata Jesus.
Fui andar com ele, batendo de casa em casa convidando as pessoas e em cada portão algo surpreendente, um bate-papo prolongado e muitas explicações.Todos possuem um laço muito forte com a ferrovia, pois o sustento de suas vidas veio do trabalho realizado para ela e isso pode também ser observado nos descendentes e outros moradores. “A Vila Dutra é uma espécie de condomínio fechado, onde todos se conhecem. Os problemas são os bairros em torno daqui, que apresentam problemas sociais e é inevitável acabarem resvalando aqui. Isso tirou a tranqüilidade dos moradores, pois a segurança de ontem já não é a mesma hoje”, diz dona Maria Soares, uma simpática moradora, na faixa dos setenta (como mesmo me disse), aposentada da RFFSA, onde trabalhou por 20 anos, ao ser abordada na rua.
Evento montado, com a ajuda sempre muito prestativa de dona Felícia, colaboradora da paróquia e daquelas que ajudam no que der e vier. Fez os patês, quatro bolos de cenoura, o café, preparou os lanches, retalhou as melancias, montou as mesas e acompanhou tudo do começo ao fim. “Gosto disso e não podia ficar de fora. Faço tudo com o maior prazer e só de ver eles todos reunidos fico na maior alegria”, diz. No evento teve de tudo um pouco, desde música cantada por Gilson Dias, um conhecido violinista, com muita MPB e o tradicional “Trem do Pantanal”. Dois documentários curtos sobre a história da ferrovia na cidade foram passados, despertando muita curiosidade entre os quase 150 presentes.
Após o término do filme sou chamado num canto e seu José Aparecido, do alto dos seus 75 anos me conta: “Sabe aquela locomotiva do Bosque, a 404? Sei uma história dela. Eu trabalhava num depósito em Araçatuba e num dia de muita chuva, a água veio e levou a linha por baixo. Gôndolas caíram e vagões de passageiros tombaram. Morreu muita gente, dentre eles o maquinista e um ajudante. O foguista vive até hoje por aqui. A locomotiva foi recuperada e depois colocada lá no Bosque”. Muitos tinham muitas histórias para contar e após a abertura com as falas iniciais, rodinhas foram se formando e o que mais se ouvia eram histórias.
Álvaro de Brito, conhecido homem da Defesa Civil no município, diante da mesa de comes e bebes me diz se sabia que o Pelé havia jogado num campinho no bairro. “Isso mesmo, veio aqui algumas vezes, para jogar com o time aqui de Curuçá. O campo era na entrada do bairro, não existe mais e até o rei do futebol jogou nele. Outro que morou muito tempo aqui foi o João Bidu, o famoso astrólogo e empresário, pois sua família é toda de ferroviários”, relata. Luiz Carlos Santos, ou Luizão Marceneiro, como é conhecido por todos tinha uma função da mais nobres no bairro. “Eu fazia a manutenção das cercas de madeira e das construções das casas. Fazia uma ronda e ia reparando o que encontrava estragado. A empresa fazia questão de ver tudo em ordem. Foi uma época muito boa”, faz questão de deixar registrado.
Andar pelo salão é ir ouvindo trechos de histórias. Algumas engraçadas, outras nem tanto. Numa das mais alegres, travada entre Geraldo Pires, maquinista da Maria Fumaça, no Projeto Ferrovia para Todos e Tuca, um ferroviário que já enfrentou sérios problemas de saúde e hoje, recuperado, consegue rir do passado: “Eu e o Gera viajávamos juntos no mesmo trem, o Socorro e íamos quase sem alimento, mas fome não passávamos nunca. Certa vez lembro de um outro colega, que vendo umas galinhas dormindo num poleiro de árvore, serrou devagarinho e jogou pra dentro do vagão, elas com galho e tudo. Foi uma festa”. Geraldo conta outra da dupla: “Os vasos sanitários dos carros vazavam para a ferrovia, era um buracão, jogávamos milho e comida por ali e quando as galinhas iam comer lá embaixo, atirávamos um pedação de trilho, que esmagava elas. Era o tal do Frango Atropelado de hoje, versão ferroviária”.
Cordeiro, trabalhou muitos anos na Fundição, nas antigas Oficinas e veio se aposentar perto de sua casa, no barracão existente na vila, quando comandou mais de100 homens. Fala muito da ferrovia, revê fotos espalhadas nas pastas trazidas pelo Jesus e o que mais provoca alegria são as aventuras feitas com os colegas: “Tinha um TL lindão, novinho e certa vez decidimos ali na hora, tomar um banho de praia. Saímos no meio da noite, sem avisar ninguém e só voltamos dois dias depois”. Na porta de entrada do salão sou abordado pela vice-diretora da escola estadual Guia Lopes, Márcia Segura, apontando uma casa do outro lado da rua, uma das últimas ainda com a famosa cerca de madeira e um puxadinho no fundo, tudo com material da ferrovia: “O morador morreu faz alguns meses. Mantinha tudo como foi feito pela ferrovia. Até a calçada ainda é parecida. Os alunos iam sempre ouvir suas histórias. Fizemos muitos trabalhos com ele. Ele contava a história da nossa escola, que foi feita para abrigar filhos de ferroviários”.
O tempo passou rápido demais e quando nos deparamos já estava na hora de encerrar tudo. O que o padre disse lá atrás é o que será feito, voltar sempre que puder, pois o que ouvimos e vimos foi só o começo. Jesus ainda empunhou uns velhos cartazes de luta, dos tempos da ativa e num deles: “Ferroviário não é de ferro”. Teve mais, Plínio e Neuza do Sindicato dos Ferroviários ficaram numa mesa atendendo as dúvidas trabalhistas, Bagnato e Donda montaram uma mesa de ferromodelismo e quase na saída algo para deixar claro que nem todo ferroviário é santo. “Vim aqui para me informar como devo proceder com meu ex-marido, também ferroviário, que recebeu uma gorda indenização e não me repassou um tostão. Ele pensa que vai me enganar, mas já me inteirei de como agir daqui para frente”. Já deu para perceber que os relatos são intermináveis, mas ficam para um próxima vez. O evento terminou, como previsto, por volta das 18h.
2 comentários:
Noel Rosa fez uma belíssima canção para sua Vila Isabel e os ferroviários de Bauru, que possuem uma vila com uma passado dos mais dignos merecem algo mais significativo para retratar a importância daquele bairro. Algo profundo, bem fundamentado e dando a devida importância para seus moradores. Já existe algo assim? o que você escreveu me tocou para algo maior,que ainda desconheço.
Marisa
Meu querido amigo Henrique. É uma pena que eu não pude comparecer a este evento. Mas lendo atentamente o que vc publicou no Mafuá deu pra ter uma idéia do grande sucesso que foi o "Café com os Ferroviários". Grande abraço, Ademir Elias.
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