MEMÓRIA ORAL (90)
UM PASSEIO HISTÓRICO PELO CENTRO DO RIO COM DR ZÉ PEREIRA
José Pereira de Andrade, 81 anos, advogado, funcionário público aposentado, carioca da gema, fã incondicional de Carlos Drummond de Andrade, vivenciou em pessoa quase um século de vida de sua cidade, o Rio de Janeiro e entre as muitas atividades que, mesmo com a chegada da idade, faz questão de não abandonar são as caminhadas pelo velho centro histórico da cidade e uma perambulada pelas centenas de sebos espalhados naquele quadrilátero. Faz isso com certo pesar, tanto que nessa última, da qual tive o prazer de participar, juntamente com meu filho de 16 anos, confidenciou meio que entristecido, porém nunca resignado: “Terá valido a pena juntar tantos livros, colecionar tanto, ter tanta raridade, pois nem sei ao certo o que farão com tudo o que tenho quando partir?”.
Seu nome lembra de imediato outro de igual importância e relevância na historiografia carioca, Zé Pereira, um imortal personagem do carnaval. “O nome acabou virando uma revista, que circulou pelas livrarias do Rio. Quando me conheceram quase virei reportagem, mas ela acabou antes disso se concretizar. Eu continuo aqui, circulando pelas ruas onde tudo me recorda o passado”, diz durante uma caminhada efetuada na segunda, 12/07, por diversos locais, acompanhado desses dois turistas interessados em suas recordações. Desde o início, ciente da semelhança na nomenclatura do nome, passei a chamá-lo de Dr Zé Pereira. Não sei se gostou muito, mas quando assim o fiz da primeira vez, fez questão de retribuir com gestos carnavalescos e me tascou a pergunta: “Olhe para mim. Você me acha parecido com quem?”. Não precisei pensar muito e tasquei um: “É a cara do Saramago”. Sua assistente, no escritório que mantém no cruzamento do centro nervoso do Rio, no cruzamento da Rua da Assembléia e Avenida Rio Branco, disse-me antes de descermos as escadas e sairmos ao passeio: “Você acabou de ganhá-lo. Se tivesse dito Drummond teria sido definitivo, pois ele tem até uma poesia dele emoldurada aqui, mas foi bem”.
Nas ruas, que fez questão de caminhar sempre na nossa frente, como um verdadeiro guia, iniciou a trajetória pelas livrarias. A primeira delas foi a Livraria da Travessa, no mais novo endereço desta no centro, na rua Sete de Setembro e depois a tradicional na Travessa do Ouvidor. Vê-lo batendo papo intimamente com os vendedores era a certeza que buscava de ter realmente encontrado um rato de livros, no que isso possui de mais singelo e puro. Depois fico sabendo que em todas possui conhecidos e gente que lhe aborda sobre encomendas feitas e lançamentos aguardados. Vendo o interesse do meu filho, lhe sussurra ao ouvido: “Guarde seu dinheiro para os próximos nas demais, pois o primeiro seu por aqui é por minha conta”. Na frente da livraria, tiramos fotos na famosa estátua do Pixinguinha e relembra algo lá do fundo de sua memória: “Aqui abaixo dele está uma reprodução do grupo do Pixinguinha, Os Sete Batutas, que muito sucesso fizeram em Paris no começo do século passado. Tocavam muito bem, cheguei a vê-los”.
E daí por diante não parou mais. Em cada esquina uma nova parada e mais explicações. Íamos observando quase sem comentários. Diante da Rua da Quitanda, nos fez olhar para seu lado esquerdo dizendo: “Lá no começo da rua tinha uma famosa quitanda ao ar livre e todos se serviam dela. Ficou tão famosa que a rua ganhou seu nome”. Na Rua do Ouvidor ("essa função era famosa no passado, hoje são poucos", diz), só estivemos para visitar uma livraria das pequenas, porém das mais instigantes, a Folha Seca, de um amigo em comum, Rodrigo Ferrari (é o de camiseta vermelha), que se especializou em temas como, Carnaval, Futebol e Rio de Janeiro. Ficou espantado em saber que já o conhecia, mas isso é outra história, derivada de mais de vinte anos de andanças e vendas por aquelas plagas. Na esquina da livraria, uma igreja, a de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores. Eis o relato da história da mesma: “Foi atingida por uma potente bala de canhão derrubando a estátua colocada lá do alto. Ficou famosa, pois na queda quebrou somente um dedo, considerado um milagre. Passou a ser reverenciada no seu interior, junto com o obus do canhão, onde os fiéis acendem velas”. Ficamos um tempo lendo frases inscritas nas portas de bares daquela região.
Ao atravessar a Avenida Primeiro de Março, duas igrejas, uma ao lado da outra e uma observação: “Uma num estilo barroco, valorosa e outra, sem sentido, enfeando o local”. Uma pequena olhada para os lados da Praça XV, a Assembléia Legislativa (“antigo Senado da República”, diz) e o famoso e sempre visitado Paço Imperial. Caminhamos “adelante” e ao cruzarmos a Rua Uruguaiana, uma parada quase obrigatória: “Essa rua tinha o nome de Rua da Vala. Aqui eram despejadas as fezes das residências na época do Império, pois ainda não existia nenhum tipo de saneamento na cidade. Imagine os escravos circulando com os vasos cheios e virando tudo num córrego, respingando aquilo pelos lados. Hoje é essa loucura, uma rua popular, tomada por ambulantes e camelôs”. Ainda nela, uma obra de arte de gosto duvidoso e uma parada: “Veja isso, nem nome tem, o que representa isso. Deve ter sido colocada aqui só para preencher o espaço”.
Mais um pouco adentramos o Real Gabinete de Leitura Português, um local onde os livros, em encadernações luxuosas estão de baixo ao alto do elevado recinto. “Aqui vocês encontram um livro original, primeira impressão d’Os Lusíadas, de Camões. Está num cofre, bem guardado, mas já me deixaram ver”. Na seqüência, na mesma rua, cruzamento com a Avenida Passos, três livrarias, uma em cada canto: “Isso aqui é o reduto de três irmãos livreiros, os 3 R, Renato, Ricardo e Rodrigues, cada um com seu sebo e livraria". Deixamos meu filho mergulhado por longos momentos no meio de tantos livros e saímos à porta para mais uma conversa: “Não sei se observou, mas os sebos também possuem livros quase novos. As editoras lançam num preço caro demais, com tiragens de uns dois a três mil exemplares, vendem uns quinhentos e já está paga a edição. Passados uns seis meses, para não encalhar, começam a repassar para os sebos e quem não tem pressa acaba pagando muito mais barato. Faço muito isso”.
Quando notamos, o dia já começava a escurecer e o chamavam com insistência pelo celular. Deixo meu filho na livraria Academia do Saber, de um dos Rs, envolvido com leituras variadas e retorno com Dr Zé Pereira até a Rua da Assembléia, com uma parada providencial para um café numa confeitaria com cara de mais de cem anos: “A Colombo é mais bonita, mas essa de dois irmãos portugueses, a Cavé, também possui seu charme. Eles brigaram e cada um ficou com a sua, parede meia. Veja os doces, tem a mesma cara de décadas atrás”. Mais uma caminhada e lhe pergunto sobre uma possibilidade de visitar Bauru onde a filha, a professora Ana Bia Andrade reside e ministra aulas na UNESP. Primeiro me pergunta sobre minhas preferências políticas e ao saber gostar de Brizola, abre um sorriso: “Façamos um acordo. Tenho 81 anos (foram completados dois dias após, 14/07), a viagem é longa e cansativa e sei das dificuldades do seu PT em São Paulo. Se o Mercadante for para o segundo turno paulista eu irei. Tá bom assim?”. Rimos e nos despedimos. Num jantar no sábado seguinte, 17/07, à noite, selamos o acordo, com a assinatura de todos os presentes num guardanapo de papel de um restaurante na Tijuca. Passei a torçer de forma redobrada para a candidatura de Mercadante vingar. E por fim, ainda ouço: "Do passeio, falta muito para conhecer, quando voltas?".
sexta-feira, 23 de julho de 2010
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7 comentários:
Henrique,
Com relação a matéria MEMÓRIA ORAL, devo felicitá-lo, pois está muito bem retratada e muito bem escrita. Gostei muito. Tomara que tudo realize a portunidade de tê-lo em sua cidade, para que possa retribuí-lo com seu conhecimento histórico-geográfico.
Parabéns e siga adiante
Abraços
Paulo Humberto Loureiro e Roseli - Tijuca Rio
Caro irmão ...me apaixonei por esse senhor.... uma figura sensacional...
Espero ainda falar com ele pessoalmente ... Também sou uma apaixonada por livros, leio de tudo, infelizmente meus filhos não me puxaram ... você teve esse privilégio...quem sabe as netas o farão ...rs...
Realmente deve ter sido um passeio especial, inesquecível... andar entre ruas com gde quantidade de livrarias e sebos , apaixonante....
Quando falar com esse senhor, diga que aqui ele tem uma fã ..... vou dizer isso à Ana ....
Beijos irmão .... e cuide desse probleminha aí heim !!!!!
Muito legal esse encontro turistico, pura história nos dois sentidos.
Abraço,
Ralinho Gomaia
henrique
obrigada pela homenagem ao meu paizinho. fiquei muito feliz. meu pai, minha mãe, minha irmã e meu namorado (não esquecendo meus outros familiares e amigos especiais...) são as pessoas que importam na minha vida. terás mias tempo pra apreciar as conversas do zé pereira. carinho e sensibilidade são valores e sentimentos que a gente tem e cultiva com o tempo. leia com atenção a matéria publicada nos jornais cariocas de hoje com a esposa do saramago...
ana beatriz pereira de andrade
VIVA O ZÉ PEREIRA!
"Em meados do século XIX, inspirado em folguedos da terrinha, o sapateiro português José Nogueira de Azevedo Paredes, que passaria à História como Zé Pereira, saia às ruas do Rio de Janeiro pulando e cantando. Com seu bumbo, conclamava o povo a festejar o Carnaval".
Dessa forma foi anunciada a chegada da revista Zé Pereira, em editorial que dpois enaltecia o surgimento de uma nova alternativa editorial "de qualidade ao jornalismo de pijama de todos os dias".
Ambos Zés e Pereiras. Conhecia só esse, o famoso, sempre lembrado nos carnavais, principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Este ano conheci outro, esse que foi passear comigo e meu filho nas ruas cariocas e me fez muito lembrar do outro. Encantador, esse último. Virei fã e quem o conhece sabe muito bem o que estou a falar.
Abracitos do Henrique - direto do mafuá
HENRIQUE, gosto do seu trabalho.
Por quê não o transforma em um E-Book ?
Veja o Carlos Feldman, na www.canal6.com.br, que publicou meu livro com 560 páginas sobre A Geografia no Turismo.
Abraços.
MURICY DOMINGUES
Caro Henrique
Li sua mensagem sobre "Um passeio histórico.." Grato pela gentileza e atenção de sempre. Temos conversado com o amigo comum, o Tristan. Breve nos veremos, com outros amigos. Saudações socialistas
Isaias Daibem
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