MEMÓRIA ORAL (108)
MÚSICA BRASILEIRA PARA PORTENHOS
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Algo estranho no ar, no dial de uma rádio da capital portenha. Em Buenos Aires, a FM Urquiza (
http://www.fmurquiza.com/ ) mantém há exatos 20 anos, comemorados em 06/08/2011, um programa idealizado por um apaixonado pela música latina, em especial a brasileira. Seu nome,
José Luis Ajzenmesser, 63 anos e a irradiar todas as terças e sextas, das 16 às 20h, o La Guagua (
http://www.laguagua.com.ar/ ). Dentro deste algo inédito por lá: um cantinho só para música brasileira, sempre das 18h às 20h. Um feito e tanto, comemorado com a
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devida pompa, principalmente no Brasil, entre seus já cativos ouvintes e fervorosos fãs.
Sua coleção de discos suplanta a de famosos colecionadores nacionais e ocupa boa parte da sala e todo um quarto do seu apartamento. Material catalogado, tem de tudo e conhece cada detalhe da maioria deles. Diante de um fã brasileiro de João Bosco pergunta: “Tens tudo dele?”. Diante da resposta positiva, instiga: “Terias este?” e mostra um gravado em
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2009 na Suécia. Não faz isso por pedantismo, longe disso. Chega ao ponto de ter-se magoado quando João esteve numa apresentação na cidade e colocado no meio de outros artistas, precedendo a canadense Diane Krall, foi apupado por um público que não o conhecia. Anos depois o cantor voltou à cidade e recebeu de José Luis pessoalmente uma espécie de desculpas. E continua tocando João de forma desmedida no programa.
“A Urquiza toca o que as outras rádios deixaram de mostrar ao ouvinte buenarista já faz tempo. Por aqui, jazz, blues e clássicos de hoje e ontem. Isso é raro de se ouvir aqui e no meu caso, faço mais, apresento a eles a
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música brasileira. Música e entrevistas, pois pesquiso, vou ao Brasil para entrevistas e quando os músicos vem aqui, passam pelo programa ou os persigo por onde estejam”, diz o entusiasta radialista.
O interesse começou na juventude, quando escutava João Gilberto, Simonal, Miltinho e coisas da Bossa Nova. “Nessa época as rádios argentinas difundiam música do mundo todo, desde jazz, francesa e brasileira. Com 12, 13 anos, comecei a comprar discos e não parei mais. Numa época o fiz só com música negra, por causa da percussão e o interesse pela brasileira veio daí. Sempre gostei da batida. Com 17 anos trabalhei
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como disc jockey em festas privadas, me formei em Arquitetura, mas nunca abandonei o gosto musical. Em todas minhas viagens sempre comprava muitos discos. Nos anos 90 dei meus primeiros passos dentro de uma rádio, daí não parei mais”, relata José Luis, falando um quase fluente português, influência do antigo gosto musical e da esposa, Mônica, que morou no Brasil muitos anos e hoje dá aulas da língua do país “hermano” para argentinos.
Conseguiu juntar toda a influência musical na montagem do La Guagua, aliás, o nome veio dessa
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miscelânea musical. O termo refere-se a um ônibus no Caribe, onde cabe de tudo um pouco, cada passageiro representando algo distinto, igual ao programa. A diferença, segundo ele, é na seleção do que entra no seu ônibus musical. “Essa rádio, esse tipo de programação se perdeu. A forma de expressão já não é a mesma nem aqui, nem no Brasil. Resisto e agrado inovando, tocando e trazendo o músico para falar de sua vida e trabalho. Veja os nomes, Wilson das Neves, Chico Batera, Joyce, Dori Caymmi, Guinga, Paulinho da Viola, Mônica Salmaso, Paulo Moura e tantos outros já passaram pelo programa”.
O profundo conhecimento da música
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brasileira é derivado de muita pesquisa, um trabalho incessante e constante. Trata-se de um investigador e ele não é modesto, afirmando que seu trabalho é o mesmo do já foi feito um dia por Villa Lobos, Garoto, Jacob do Bandolim e Radamés Gnattali. “Rui Castro foi muito importante para mim. O conheço há uns dez anos e me ensinou a conhecer as origens da Bossa Nova como movimento de samba. Ela não é jazz, é puro samba. Na última visita ao Brasil levamos Tito Madi a um piano bar no Leblon e ele, mesmo em recuperação de um AVC, cantou e até tocou. Foi um dos mais empolgantes programas que já apresentei”, relata emocionado.
Mas não é fácil a vida do La Guagua, contando com poucos patrocinadores. Uma sobrevivência difícil e espinhosa, pois segundo ele: “Os apoios na Argentina são raros. O produto que tenho não é para todo mundo, portanto, de pouca venda. É um programa de música popular não popularizada. É uma música que existiu, ainda existe, mas ninguém divulga. O dial hoje é autoritário, de mão única. O gosto existe, o bom e o
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mau gosto e o ouvinte não consegue mais conhecer e gostar de música, pois hoje não consegue comparar, tendo poucas possibilidades de escutar a verdadeira. O que toca na Argentina é pago, como vocês dizem, pelo jabá. E me dizem ser um utópata, um doente de utopias, pois persigo o que não posso alcançar”. Mesmo descrente, os ouvintes surgem de todos os lados, tanto nos telefonemas durante o programa, como nas cartas e CDs recebidos diariamente em sua
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casa, oriundos de todos os cantos do continente. Uma clara demonstração de que, mesmo sem nenhuma pesquisa de audiência, ela deve ser grande e a baixa potência da emissora, de no máximo uns 30, 40 quarteirões, nenhum impeditivo, pois a grande repercussão, ele sabe, é a oriunda via internet.
José Luis paga para manter seu programa no ar e assim sendo impõe algo: “Você quer me escutar, fique. Não quer mude o dial. S
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e não quer tem todo o direito de dar uma volta no ponteiro, mas eu sei que não irão encontrar quase mais nada”. A melhor denominação para o programa é tratá-lo como se fosse um oásis, pois viceja numa espécie de deserto. “Um deserto sem água e o que irradio uma gota na imensidão do oceano. É o mesmo que ir ao mar e urinar. O que isso agrega ao mar? Nada, esse o La Guaga, mas eu vou em frente, não existe outro caminho”, conclui. Alguns iguais a ele tentam nesse momento ampliar o intercâmbio cultural entre os países latinos, projetos desconhecidos de sonhadoras pessoas e fazem algo por um simples motivo, tudo pela música e para a música. Reconhecidamente, utópatas.
OBS.: Essa entrevista foi gravada em Buenos Aires nos dias 28 e 29/07/2011, respectivamente, na residência do radialista e estúdio da FM Urquiza.