sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

DROPS – HISTÓRIAS REALMENTE ACONTECIDAS (66)
A ‘INTOCÁVEL’ DO 217, TUDO NO CAMINHO DO ANDARAÍ
Esse título aí em cima tem um pouco a cara dos textos do Nelson Rodrigues, o dramaturgo que, como ninguém soube captar todos os meandros dos relacionamentos suburbanos, não só do Rio de Janeiro (mais dele é claro), mas do Brasil num todo. Vivi um bocadinho disso nessa semana e tento, ao meu modo e maneira, descrever o que presenciei dentro de um coletivo, o 217 que saiu do centro do Rio, ao lado do Largo da Carioca, atravessando a Tijuca (passou ao lado do Maracanã e da praça Saenz Peña) e desembocando no Andaraí, boca de entrada da Zona Norte carioca.

Eu e Fausto Bergocce, após um dia intenso vivido no centro do Rio, quarta, 08/02, por volta das 19h, pegamos o tal ônibus no ponto inicial, já cheio e viajamos nos primeiros quilômetros em pé, no costumeiro roça-roça (algumas vezes involuntário, outras nem tanto). Conseguimos nosso lugar à sombra, ou seja, sentados, quase na metade do percurso e assistimos de camarote o desenrolar de uma hilária historieta, dessas só possíveis nos lotações. Poucos bancos adiante de nós, uma senhora, cor parda, na casa dos 60 anos, com uma imensa sacolona de plástico, dessas a ocupar amplo espaço num ambiente tão apertado. Estava sentada no corredor e praguejava em altos brados contra uma menina, garota de uns 16 anos no máximo, uniforme escolar desses com a saia cheia de plissês, alegando que a mesma estava esbarrando sucessivamente com os cotovelos na lateralidade do seu corpo. “Eu não permito uma coisa dessas, vá fazer isso com quem permite, eu me dou ao respeito”, esbravejava.

No banco dianteiro uma senhora das mais distintas, tipo funcionária pública, que acabara de sair de um longo expediente, cansada, mas vendo a injustificada opressão contra a menina, resolve ficar ao lado desta. “Que é isso minha senhora, abaixe a bola. Ela não tem culpa, o ônibus está cheio, fique na sua”, disse. Foi o suficiente para o esquentar do palavreado. “Se a senhora permite isso, eu não. Ainda me dou ao respeito. Nas minhas partes ninguém toca sem meu consentimento” e outras banalidades, numa clara demonstração de insensibilidade e até certa instabilidade mental (passional, surreal e tencional). O fato é que todos no ônibus passaram a participar ativamente da trama. Eu mesmo, bancos atrás só para apimentar proferi em alto e bom som: “Em mim podem se roçar a vontade”. Muitos, entre risos, repetiram a dose e quantos mais se pronunciavam, mais exaltada a passageira cutucada ficava.

Estava estabelecida a balburdia. Até a trocadora, que antes só ria, deu opiniões. Quem entrava naquele momento, ainda sem entender de nada, pensava estar a rolar ali uma peça de teatro (e não era exatamente isso?), onde todos foram convidados a participar. Num dado momento, a dita ultrajada, não mais suportando a completa inferioridade numérica, resolve descer bem antes do seu ponto e ao passar pelo corredor, o faz sob apupos: “Ei, não encosta em mim. Olha o cotovelo!”. Com sua saída, o clima não se acalma e todos passam a promover suas justificativas e interpretações para o ocorrido. Acuada, a menina do cutucão foi a única a permanecer calada, ainda atônica com o sucedido. Na descida no seu ponto, a senhora que tomou as dores pelas auferidas injustiças proferiu aos descer as escadas: “Pelo menos não fui agredida como o garotão que foi defender o mendigo e levou uma baita de um cacete. Tenho assunto para contar lá em casa”. Desce sob aplausos. Na seqüência, todos que desciam brincavam sobre esbarrões e afins. O corredor do ônibus virou uma espécie de palco de desfiles (ou seria Corredor Polonês?). E assim, deixo registrado aqui mais um causo típico, algo hilário dos subúrbios cariocas, mais um a cair no anedotário popular do subúrbio. Nélson Rodrigues adorava essas situações.

OBS.: Tirei algumas fotos, publicadas aqui. As fora de foco, algumas propositalmente, outras pela inabilidade deste mequetréfico fotógrafo, defino como provocadas pelo incessante solavancos do coletivo urbano, além das freadas e das curvas, todas de alto risco e ótimas para esbarrões múltiplos e variados. Publico também um registro de igual teor com um senhor todo de branco, terno impecável, chapéu no cocoruto, ao estilo Zé Pilintra, pasta de trabalho nas mãos, que mesmo não tendo nada com o texto acima publicado, acabou por me hipnotizar e suas fotos, tiradas quase na esquina das ruas da Assembléia e avenida Rio Branco, centro nervoso do Rio, ilustram magistralmente como é a verdadeira “Alma Encantadora das Ruas” (título de um inesquecível livro de João do Rio).

2 comentários:

Anônimo disse...

Henrique

Isso aqui dá uma peça de teatro. Pense nisso e o escreva com sugestão do Paulo Neves montar esse texto para o próximo ano. Em cima desse tema dá para viajar na maionese.

Regina

Anônimo disse...

Amigo, esse é um dos muitos episódios cotidianos nos ônibus dessa cidade. Imagine o que acontece dentro dos trens e metrô. Daria um bom livro de crônicas dessa cidade, não é mesmo. Porque não a escreve. Argumento e teor é o que não falta.
Um abracito carioca em todos daí
Paulo Humberto Loureiro - Rio RJ