BOCADINHO DE MINHA FÉRREA HISTÓRIA E UM MUSEU EM COLÔNIA DE
SACRAMENTO, URUGUAI
Sou tarado por museus ferroviários e por onde ande tendo
algum, dou meu jeito de visita-los. Já conheci alguns muito bons, outros nem
tanto e até aqueles meio largados, descuidados por completo. Essa mania tem
tudo a ver com meu genealógico passado entrevado com os trilhos férreos. Meu
avô, José Perazzi foi ferroviário da Noroeste, marceneiro dentro dos barracões
ali na vila Falcão, onde morou a vida toda. Meu pai, Heleno Cardoso de Aquino
também foi ferroviário, mas da Cia Paulista, depois Fepasa, chegando ao cargo
de Chefe de Estação. Sua família morou em várias cidades, casas construídas pela
cia férrea e meu irmão acabou nascendo em Mineiros do Tietê. Minha queimadura
nas costas a me acompanhar desde os 4 anos foi adquirida ali pertinho, numa
estação não mais existente, a de Capim Fino, hoje tudo transformado numa
plantação dentro da propriedade do ex-prefeito Oswaldo Sbeghen. Anos depois,
aos 13 anos fui estudar na Escola Profissionalizante Aurélio Ibiapina, mantida
pela Rede e chamada carinhosamente de “escolinha da Rede”. Até o astronauta
Marcos Pontes estudou ali, numa época que fazia frente e não passava vergonha
nenhum com o Senai. Bons tempos recordações eternas.
Eu até podia ter seguido carreira como ferroviário, no
segmento da metalurgia, mas vi que meu negócio não era aquilo. Aqueles prédios
todos, imensos e sempre cheios de gente sempre me impressionaram muito, mas vi
logo de cara que não era o que queria para minha vida. Sai de lá e fui
trabalhar na antiga Fundação Educacional de Bauru, nos seus tempos de vila
Falcão e depois na Bradescor, a corretora de seguros do banco do seu Amador
Aguiar. Mas a ferrovia nunca mais saiu de dentro de mim, pois tanto na casa do
meu avô, nos almoços dominicais, como em casa, o assunto predominante sempre
foi a ferrovia. Assunto inesgotável, sempre cheios de muita emoção. Nem em
casa, nem na casa dos meus primos ninguém seguiu a profissão férrea, numa época
que todos de Bauru, de um jeito ou de outro sempre tiveram laços fortes com a
ferrovia. Minha família quebrou o elo aí, mas a paixão permaneceu encravada
dentro de mim e nunca me abandonou. Continua pulsando e muito dentro de mim.
Tenho guardado até hoje na casa dos meus pais recordações
valiosas dos tempos em que meu avô e pai trabalharam. Rever as fotos é uma
viagem das mais inebriantes, pois vem à mente tudo aquilo, aquela atmosfera
inebriante que sempre contagiou todos da família. A vila Falcão sempre pulsou
ferrovia. E depois, lá pelos meus sete anos, morava na esquina da Julio Prestes
com Rio Branco, casa da família da esposa do médico Omar Khouri e de lá saímos
para morar na quadra uma da Gustavo, quando meu pai vendeu uma chácara que
tinha lá pelos lados da ponte do Cedro e não saiu de perto da ferrovia. Ficou é
também mais perto do ribeirão Bauru, local onde mora até hoje. O lugar sofreu
transformações, mas a ferrovia continua nos fazendo companhia. Antes com mais
sobriedade, com mais imponência, hoje menos, meio que judiada, abandonada e vilipendiada.
Eu sou daqueles que reconhece e dá todos os louros do progresso da cidade por
causa do famoso entroncamento bauruense. Não existe como negar isso, como
renegar, mesmo que alguns insistam nisso.
Nos meus tempos de trabalho em Jaú e Marília ou mesmo
vendendo chancelas pelo interior paulista, viajei demais de trem para todos os
lados. Tinham horários ótimos que saiam de Bauru logo cedo e voltavam no final
do dia. Nem era preciso botar o carro na estrada. Adorava viajar e me sentar
nos vagões restaurantes, lugar de grande desconcentração mental. Sonho com
esses lugares até hoje. Impossível não se lembrar dos meus tempos de moleque
quando ia com meus pais para São Paulo, ida e volta de trem. Tínhamos uma tia
que morava em Franco da Rocha, uma linda chácara num lugar com o nome de “Paradinha”.
Passei muitas férias ali, todas de trem. A grande briga entre os quatro filhos
do seu Heleno e dona Eni era para decidir quem iria ficar na janela. Outra
grata lembrança foi de minha mãe que dava aula em Airosa Galvão, hoje
Potunduva, ia e voltava todo dia de trem. Fiz esse percurso a acompanhando
muitas vezes e quando a ponte era uma bem baixa, quase rente ao rio Tietê. Sabia
de cor o nome de todas as cidades daqui até São Paulo, até as menores e tinha
muito gosto em ir repetindo que o bilheteiro anunciava a cada chegada de nova
estação.
Essas histórias me voltam todas à mente quando começo a
escrever algo sobre trilhos. Anos depois vim a trabalhar como Diretor do Patrimônio
Cultural na Secretaria Municipal de Cultura e fui cuidar exatamente das
questões ferroviárias na cidade, inclusive os museus. Foram quatro anos vividos
com muita intensidade junto aos trabalhos do Ferrovia para Todos, os passeios
da composição férrea da Maria Fumaça, o Conselho Deliberativo do Museu
Ferroviário, o Codepac – Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Bauru,
quando restauramos os últimos carros ferroviários circulando hoje no projeto.
Peguei um gosto maior por museus, pela sua especificidade e fui me inteirando
com afinco do tema. Tudo foi vivido tão intensamente que até hoje me vejo
tratando de questões férreas com algum conhecimento de causa. Naquele período
visitei muitos museus e instalações férreas Brasil afora. O conhecimento de
realidades bem diferentes uma da outra foi consolidando cada vez mais isso do
amor pela ferrovia e a defesa dessa causa. Hoje, como membro da Associação de
Preservação Ferroviária e de Ferromodelismo de Bauru e região continuo
enfurnado nas questões relacionadas aos trilhos.
Escrevi tudo isso por um simples e único motivo. Quando
estive com a Ana na Argentina e Uruguai, entre o final de julho último e começo
de agosto, um dos locais visitados foi na cidade uruguaia de Colônia de Sacramento,
vizinha de Buenos Aires, bastando atravessar o Rio da Prata, quando pegamos um
ônibus desses de tour e paramos num dos pontos para conhecer uma antiga praça
de touros, prédio imponente, em ruínas, cercado e com impedimento de visitação.
Ao lado, algo que logo de cara me chamou muito a atenção, um pequeno, modesto,
mas muito bem cuidado Museu Ferroviário. Na verdade uma reconstituição de uma
estação, com vários barracões e itens férreos todos colocados naquele local. O
trem não passava naquele lugar, mas tudo foi revivido ali com um esmero e
cuidado muito grande.
Fiquei encantado e não queria mais ir embora. Fotografei
cada cantinho, vasculhei tudo o que me foi permitido. Era uma fria manhã e só
nós dois ali no local, daí tudo à nossa disposição. Dentro de um vagão, um belo
restaurante e um vinho para esquentar por dentro. Os uruguaios sempre muito
atenciosos nos deram explicações de tudo, contaram histórias, mostraram livros
e nos permitiram percorrer lugares onde os visitantes nem sempre acabam indo.
Manhãs assim são inebriantes para os amantes por ferrovia.
As recordações trazidas são as fotos, algumas delas publicadas aqui junto desse
relato. Não quero fazer comparação nenhum com nenhum outro museu, muito menos
com o nosso bauruense. Cada um cuida do seu da melhor forma e conveniência
possível. Gosto muito do pessoal envolvido com a questão ferroviária dentro do
museu bauruense, uns mais envolvidos e verdadeiramente mais apaixonados que
outros, mas todos cientes de estarem diante de algo dos mais valorosos. Esse
apaixonado texto é mais uma dentre tantas declarações explícitas de amor que
costumo fazer regularmente com algo proveniente de temas ferroviários. As fotos
dizem tudo, mostram o que meus olhos viram e o que gostaria que outros pudessem
também ver. Sempre que posso volto ao tema, conto algo novo, explicito um pouco
mais de uma paixão latente e doida, pois é mesmo para chorar comparar o que já
foram nossas ferrovias e no que se transformaram. Sei que um dia ela voltará a
ser pujante, pois será inevitável o seu retorno como o mais viável meio de
transporte para se adentrar as grandes cidades brasileiras. Não haverá outro
jeito e quando isso acontecer, poderá até bater naqueles que a fizeram definhar
um sentimento de culpa, ressentimento tardio, por algo que poderiam ter feito e
não fizeram.
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