sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

DOCUMENTOS DO FUNDO DO BAÚ (74)


O CELULAR E NOSSAS INTIMIDADES

Desço do avião e no aeroporto pego aqueles ônibus disponibilizados pela empresa aérea para me levar gratuitamente até o outro aeroporto na capital paulista. Cansado, manhã de domingo, a maioria viaja calada e assim permanecem. A cidade está vazia e a viagem não vai demorar nada diante dos outros dias da semana. O tempo é utilizado pela maioria para um último cochilo. Tudo transcorreria na maior tranquilidade, não fosse um celular tocar. Daí por diante uma conversação feita em voz alta e todos os quarenta passageiros tomam conhecimento de toda a vida íntima da portadora do celular. A altura do tom talvez se deva a ela não ouvir e nem entender direito o que a outra pessoa diz do outro lado da linha.

Quando desliga, ouço um “ufa!’ do meu lado. O descanso dura pouco. O tele fone a fez perder o sono e queria falar. E alto, muito alto. Inicia uma conversa em alto e bom som com a passageira do seu lado. Mantém o mesmo tom e altura da voz. Fico sabendo muita coisa da vida dela. Como pensa em relação ao seu enteado, até o que ele faz na vida, quantos filhos, tudo. Triste saber que ele está andando em não muito boas companhias e que que pode ser dar mal a qualquer instante. Num outro momento esbraveja pelo fato de sua família a tratar de um jeito que ela não gosta muito. Fico sabendo disso tudo e sem ver o seu rosto. Ela lá na frente, eu aqui atrás e querendo cochilar. Decididamente, não deu.
 
Quando ela dá uma trégua, ouço outro celular tocar e nele um senhor tenta falar o mais baixo possível, colocando até a mão entre o aparelho e a boca, tudo para que ninguém consiga saber o assunto de sua conversa. Pelo visto, não quer que ninguém saiba nada . Fala olhando para os lados e finjo não o notar. Mas como, se anteriormente uma queria falar bem alto e esse agora falando tão baixo. Estará escondendo alguma coisa repugnante? O diálogo dura pouco e assim que desliga volta a fechar os olhos. Acho que dorme, eu não. Perdi o sono. Outros telefones tocam são acionados. Uns avisando que estão chegando. É um tal de gente esperando, definições de horários, locais sendo marcados como encontros e avisos de que tudo correu muito bem na viagem.

Eu, como não tinha ninguém à minha espera, meu celular permaneceu quietinho. Não liguei para ninguém, mas como será que agiria se o mesmo tocasse justamente naquele momento?

OBS.: Escrito dia 14/12/2014, tendo ao lado Ana Bia, que dormiu o tempo nada e nada presenciou. Hoje na correria, não tendo o que publicar, resgato o texto esquecido no meio da agenda.

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