domingo, 16 de julho de 2017

MEMÓRIA ORAL (212)


COMO ESCREVEU JOÃO DO RIO, “EU AMO A RUA” - EXPLICO*

* Algo das andanças e paradeiras obrigatórias e aleatórias na Feira do Rolo hoje pela manhã, local de incontáveis e algumas inenarráveis histórias
.
João do Rio foi um dos mais famosos dândis brasileiros e isso que aqui foi reproduzido no título deste texto foi escrito por volta do ano de 1900. Escritor que gostava de circular pelas “quebradas do mundaréu” (essa expressão é de Plínio Marcos), uma ousadia, no período onde vive, mais exatamente entre 1881 e 1921. Mesmo com toda a sociedade crendo ser o que fazia um abuso, suas crônicas saiam publicadas regularmente pela imprensa carioca e acabaram tempos depois se transformando num dos livros antológicos sobre esse tema dos personagens das ruas, o “A alma encantadora das ruas”. Todos os que se atrevem a escrever e observar as ruas com olhos de carinho e dedicação são crias do João do Rio. Eu sou um apaixonado e toda vez que pego nesse seu mais famoso livro, essa frase inicial me arrebata.

Depois dele vieram outros a escrever sobre esses personagens das ruas. Cito alguns poucos, os que mais me tocaram ao longo de minha vida. Lima Barreto, um que enlouqueceu dentro das dificuldades de sua dura vida, escreveu preciosidades, todas merecedoras de leituras e releituras. “Bruzundangas” é um livrinho de cabeceira. Depois dele, dou um salto e venho cair em João Antonio, um cronista do mundaréu do Rio de Janeiro. Ele não só escrevia sobre os povos das ruas, os marginais todos, desde travestis, frequentadores de botequins, os mais imundos, jogadores de sinuca, bêbados, prostitutas, apontadores de jogo de bicho e tudo o mais que estivesse na sarjeta. Li tudo dele e o tenho na maior consideração. Anos depois, meu sogro, seu Zé Pereira, advogado carioca, quando de seu falecimento, vi que ele possuía toda a obra dele. Trouxe tudo para minha casa e guardo a sete chaves. “Malagueta, Perus e Bacanaço” é uma obra que inspira a sair pelas ruas sem rumo, entrando em portinholas de tudo quanto é linhagem.

Depois dele, quem muito me impressionou e esse conheci pessoalmente foi o também dramaturgo Plínio Marcos. Escrevia como falava, do jeito mais popular e de fácil entendimento. Quase tudo o que produziu foi em forma de peças de teatro, uma melhor que a outra, todas bem atuais, mesmo décadas de seu falecimento. Vivenciava a dureza das ruas e escrevia com as vísceras. “Dois perdidos numa noite suja” é antológico. O via com seus livros, impressos em papéis de baixo custo e circulava de cidade em cidade, montava uma mesinha na porta de teatros e vendia gritando. Eu tento escrever como ele e como todos os meus inspiradores, mas não consigo. Quando não escrevo, gosto muito de permanecer nas ruas, observando, anotando histórias e mais histórias na memória.

Todos eles escreveram sobre o que me estimula hoje a sair de casa e perambular pela aí. Qual o grande motivo de querer mais e mais estar todo domingo na Feira do Rolo? É esse contato com o pessoal mais simples desta cidade. Sento num canto e fico a observar o que se passa naquele lugar, o mais democrático da cidade, segundo o meu ponto de vista. Observo e quando estou inspirado, escrevo. Quando tenho tempo, divago, vou fundo. Anoto as histórias num caderno, pois do contrário me esqueceria, pois a mente já não anda lá muito boa com o passar dos anos. Hoje mesmo, fui pra feira e esquecei de pegar em sua casa o amigo Gilberto Truijo, o advogado que já me defendeu numas pendengas da vida, tudo por causa do irmão que a feira possui. Fui e esqueci de tudo o mais e ele ficou me esperando no seu portão. Indesculpável, mas jogo a culpa na feira e nas suas histórias, seus personagens. Quando vou pra lá, esqueço de tudo.

Dias atrás estava na casa de um dos personagens mais brilhantes desta feira, o Carioca, o da banca de livros, lugar onde bato cartão todo santo domingo e ele me dizia de algo desta feira, onde mantém sua banca há mais de duas décadas: “Henrique, gosto tanto da Feira do Rolo que, conto os dias para chegar o domingo”. Confessei a ele que faço o mesmo e passo mal quando em Bauru e algo me impede de estar na feira. E quando viajo, domingo principalmente, pergunto onde estou: “Tem feira por aqui? É daqueles ao estilo Mercado de Pulgas?”. Se for, bato cartão, registro e depois, publico no blog. Quem pesquisar por lá (escritos desde 2007) constatará que mais de umas vinte já estão devidamente registrados, com suas histórias e fotos, sempre com muitas fotos. É simples o gostar de lugares assim, pelo menos para mim, pois nesses lugares flui o povão e junto deles suas coisas, sua maneira de viver e, principalmente, suas histórias.

Hoje e todos os demais domingo, quando aqui em Bauru eu, na imensa maioria das vezes não passo nem na feira propriamente dita, pois permaneço quase todo o tempo na do Rolo, meu lugar, onde me recarrego e me realimento, principalmente de histórias. Os pontos de encontro hoje são dois. Primeiro a passagem obrigatória pela Banca do Carioca, o livreiro. Gosto tanto que passei há uns dois meses atrás a fotografar as pessoas que por lá circulam e o que estão ali consumindo. Isso vai se transformar numa exposição, fotos minhas, das pessoas com livros, CDs, LPs ou outras peças ali vendidas. Tenho me surpreendido com o brilhantismo das pessoas e de suas escolhas. Teve gente que já tinha tirado fotos, mas pediu para tirar outra. Isso acho que não para mais.

O segundo lugar, tão inebriante quanto o primeiro é o Bar do Barba. Ele, por si só, outro personagem do lugar, dentre tantos outros, desses arrebatadores, como o Carioca e o próprio Moisés, o presidente da Associação dos feirantes que criou um slogan maravilhoso, o da “feiraterapia”, para designar o maravilhamento de estar nesse lugar aos domingos. Barba alugou um barracão na esquina das ruas Julio Preste e Gustavo Maciel, ali mora e é o seu negócio. Vive disso e aos domingos, seu maior movimento. Pintou o muro de fora de vermelho, justo o que dá para a feira e ali nos reunimos. O grupo nasceu do nada e todo domingo ali estão, todos contrários ao golpe e se reunindo para conversar, estar juntos e provar a máxima, “nada melhor de nas adversidades se unir”. Se o golpe viceja nas ruas, esse grupo se reúne para demonstrar não abandonar seus ideais.

Hoje, 16/07, passei nos dois lugares. Fui com o Kyn Junior e ele depois desapareceu no meio do furdunço e por ali fiquei. Comprei, como sempre faço, algo. Hoje, um livrinho antigo de crônicas do Monteiro Lobato, “Negrinha”. Meros R$ 7 e fiquei aguado para trazer uns CDs, mas me segurei, pois semana passada extrapolei e o fiz com dezenas, pagos pouco a pouco, em drops, segundo aceitação do dono da banca. Lá encontrei o Aurélio, jornalista do JC e papeamos com o iraquiano da relojoaria, em histórias que conto aqui no meio da semana. Fomo sentar no Bar do Barba e lá, chegam a advogava Cristina Zanin e o professor Geraldo Bergamo. Conversa da boa, isso um dos requisitos básicos do lugar. Quem passa por ali, nunca havia parado, foi o idealizados do Instituto Gaia, lá no Colina Verde, o Paulo Brito. Parou para me cumprimentar, gostou da conversa, foi ficando e quando se deu conta não queria mais ir embora. Outros foram chegando, o baterista Ralinho Manaia e o empresário da música, André Villela, hoje morando em Araraquara. Depois o Manoel Rubira e a esposa Ana que chegam e contam: “Nós passamos pela feira duas vezes aos domingos. Na primeira, 8h30 a gente vem buscar verdura e depois lá pelas 11h30 para sentar com o pessoal”. Outros passaram rapidamente, como o turco Hamilton Suaiden, morador do mundo e o professor de esperanto Rubens Colacino.

Juntei umas quatro histórias só hoje e elas podem render se as colocar no papel. Pelas fotos aqui publicadas um bocadinho disso tudo. Elas ilustram esse texto e por si só, cada uma possui algo grandioso, como reencontro com o Décio, músico da velha guarda, montando uma bateria na feira, peça por peça, tudo improvisado. Hoje estava com dois pratos de bateria debaixo do braço. Por fim, cruzo com o Fernando Medeiros, do Banco do Brasil e suas três crias, todas lindas e passeando com o pai no final da feira. E antes que conseguisse sentar novamente, eis que sou puxado para o lado. Era o Sardinha, moto taxista e pedindo para que tirasse fotos dele com óculos e sem óculos. Pediu para passar lá no ponto onde trabalha e o assunto muito me interessa: “Tenho histórias da rua para te contar”. Se acha que vou ou não vou? E as musas do Bar do Barba, mãe, filha e neta, tudo sob o manto do dono do estabelecimento, também protetoras do velho barbudo e sanfoneiro. Depois sentei junto dos amigos e amigas e só consegui sair da feira lá pelas 14h, quando o telefone não parava de tocar e do outro lado a polícia, Ana Bia, dizendo algo que ainda não tinha feito: “Comprou o que lhe pedi da feira?”. Nem havia me lembrado, mas como a feira já havia desmontado suas barracas, não tive outro jeito e passei no supermercado antes de ir ao seu encontro.

Depois conto mais, preciso trabalhar.

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