sábado, 23 de setembro de 2017

OS QUE FAZEM FALTA e OS QUE SOBRARAM (103)


POR QUE A GENTE SE ESCONDE? H.P. LOVERCRAFT E DALTON TREVISAN

Meu filho passou por aqui e ficamos horas conversando sobre um escritor que ele gosta muito, o norte-americano H.P. Lovecraft. E ele se deu a contar a triste história dele, nascido de uma família muito rica, o avô perdeu tudo e a família fica pobre de um dia para outro. Vê o pai enlouquecer, o avô falecer e a mãe também chegar a esquizofrenia. Foi uma transformação desde seus oito anos de idade e a sua tábua de salvação se deu pela escrita. Leu tudo o que lhe caiu às mãos e escrevia muito, sempre. Com o tempo foi conseguindo introduzir alguns de seus escritos em editoras, mas o estilo de ficção fantástica exigia cada vez mais e mais. Ele não parou de escrever um só instante de sua vida, uma produção atrás da outra, algo incessante, sem trégua.

E fui lhe perguntando como era possível aquilo. Primeiro fiquei intrigado do lugar onde sempre morou, a pequena cidade de Providence, em Rhode Island, hoje com cento e poucos mil habitantes. Sede de uma famosa universidade, a Brown. Fomos ao google saber mais desse lugar e descobrimos até a casa onde morou, uma pensão. Um casarão bonito, onde ocupava um quarto e dali, seu canto, onde escrevia e escrevia. Fiquei intrigado em saber como ele vivia, pois meu filho, que tudo sabe dele ia saciando minha curiosidade. Dizia que ele morreu relativamente cedo, aos cinquenta e pouco e por problemas estomacais, pois como morava só, comia muito enlatados. Comia e escrevia, saia pouco de casa e vivia ali trancado num quarto, com síndrome de pânico de multidões e produzindo, algo sem parar.
Num desses quartos ele escrevia.


Depois me conta que ele não chegou a conhecer a fama em vida. Viveu mal e porcamente a vida toda e hoje, reconhecido como um dos mais cults escritores norte-americanos, adorado por todos os famos escritores, sua obra está reproduzida por tudo quanto é canto. Em vida, fazia misérias para sobreviver e os editores lhe exigiam cada vez mais, contos em cima de contos, livros em cima de livros e ele nunca decepcionou, escreveu muito e sempre com qualidade. Olhei para algumas de suas fotos e ali uma pessoa pálida. O filho me revela que ele tinha um problema de pele, que o fazia ter uma temperatura fria, algo que ele nunca conseguiu resolver. Foi um isolado, trocava correspondência com alguns, mas saia pouco de casa e tinha pouco contato com estranhos. Os vizinhos e quem o conhecia devia acha-lo muito estranho.

Eu nada li dele, mas meu filho leu tudo e antes mesmo de querer ler, pois não sou chegado em terror fantástico, meu interesse se deu pela forma como viveu, como produziu, como tocou sua vida, nunca saindo do lugar onde sempre viveu. Um recluso. Viajamos juntos pelas fotos e em cada uma, uma nova viagem, enfim, como se dava sua vida naquela situação. Confesso a ele nada saber de Lovecraft, mas havia lido um livro de outro na mesma situação e ao citar o nome do livro, O Apanhador no Campo de Centeio, do J.D.Salinger, um que não se deixava fotografar e muitos do que o leram nunca viram foto sua, meu filho também já o havia lido. Conta algo também dele. Essa a escolha de sua vida, viver apartado dos afagos. Situações diferentes, pois Lovecraft nunca conseguiu fazer muita grana em vida, penúria e apertos, já Salinger, pelo que me consta nunca teve problemas nesse sentido. Ambos escolheram tocar suas vidas sem holofotes.


Cito o caso do brasileiro Dalton Trevisan, o Vampiro de Curitiba, que também odeia ser fotografado e abomina ser entrevistado e parado pelas ruas. Vive no seu mundo particular, escreve, lê muito e sai às compras sempre na mesma livraria do bairro onde mora, mas se recusa a entrar em rodinhas e conversas com estranhos. Voltamos ao google e achamos a casa onde nasceu em Curitiba, depois o bairro onde circula e até algumas fotos que as pessoas vão tirando dele sem que o perceba. Dalton sempre me intrigou, uma vez fiquei a perambular pelo bairro onde vivia pensando em trombar com ele numa esquina. Li alguns de seus livros, repasso um deles ao filho, que se interessa pelos seus curtíssimos contos, algo onde sempre tentei me espelhar para escrever de forma mais sucinta, breve. Não consigo, muito menos viver recolhido, pois o mafuá vive cheio de gente e gosto disso. Hoje cedo, duas visitas, a tarde mais duas e em todas interrompo meus escritos, a finalização do texto final do meu mestrado.

Meu filho se vai e fico a pensar em como seria viver isolado, sem muitos contatos externos. Isso me fez sentar aqui no computador, dar um breque em tudo o mais e colocar no papel a conversa tida com o filho. Foi um exercício ir reconstituindo o diálogo, a conversa, que nem me lembro dos motivos de ter se iniciado. Acho que o filho queria prosear e buscou um assunto para a conversa, buscou algo que me intreressasse. Acho ótimo isso, em cada passada dele por aqui, ele me instiga a produzir um texto novo sobre algo levantado na conversa. Como ando esquecido das coisas, quando ele levanta um assunto interessante, pego logo um papel e marco algo, para não me esquecer e depois pensar mais naquilo. Hoje escrevi logo que saiu, não deu nem tempo de anotar nada e o que me intriga neste momento são as casinhas onde moraram Lovecraft e Dalton Trevisan. São bem diferentes do mafuá. Viajo pensando nelas e assim o tempo se esvai no vão dos meus dedos. Escrito isso tudo, volto aos meus escritos, que nada tem a ver com essas divagações.
A primeira casa de Trevisan, nos Altos da XV. Ali tudo começou...

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