quinta-feira, 14 de junho de 2018

DOCUMENTOS DO FUNDO DO BAÚ (117)


DUAS HISTÓRIAS DOS TEMPOS ATUAIS

1.) A GREVE DA UNESP E O MENINO DE RUA QUE QUASE FOI IMPEDIDO DE COMER NUM SHOPPING

Com uma carta publicada hoje na Tribuna do Leitor, no Jornal da Cidade, os "Servidores Técnico-Administrativos em greve do câmpus Bauru da Unesp", com o título "Moção de Repúdio ao Cerceamento à Liberdade de Organização (Reve) Unesp", expõem algo de doer nos ossos, calar fundo e constatar por A + B, o golpe é mesmo de uma insanidade sem fim e seus desdobramentos já se estendem por todos os lugares, os possíveis, os imagináveise os inimagináveis. Estamos vivendo e vagando numa terra de ninguém, território onde uns loucos, os tais neoliberais que só pensam em si e nas leis de mercado, esses podem tudo contra todos os demais mortais. Leiam a íntegra da carta: https://www.jcnet.com.br/editorias_noticias.php….

O que está ocorrendo na greve na Unesp é o sinal de como se darão as relações trabalhistas daqui por diante. O patrão sabendo da greve, já anuncia antecipadamente tudo o que irá acontecer a quem se atrever a parar. Rua é pra começar a dialogar. A decisão é tomada lá no gabinete do governador, do reitor e passada de cima para baixo como ordem a ser cumprida. Não existiu nenhum diretor em nenhum nível da Unesp constestando ou que, deixou de cumprir o estabelecido pel ordem ditada pelo reitor. Todos abaixaram a cabeça e cumpriram, ou seja, repassaram para os seus o chicote e com a mesma intensidade recebida lá de cima. Ninguém nos desvãos abaixo, os diretores e com cargos comissionados colocam mais o seu na reta. Todos sabem de antemão que os dias da universidade estão contados e assim sendo, ninguém mais arrisca nada. Todos cumprem e os que conseguem, ainda sufurem de algumas benesses antes da luz ser totalmente apagada.

Saio da greve e vou para o caso lá do shopping baiano, onde um garoto de rua com a camisa do time de futebol, o Vitória consegue sorrateiramente entrar e diante de um balcão de comida sensibiliza alguém. Esse quer lhe pagar o prato de comida e é impedido pelo segurança. Esse segurança, para mim está no mesmo grau do diretor da instituição educacional, no caso a Unesp, só para não entrar em outros exemplos. Ele recebe ordem e a cumpre, pois tem um emprego e isso não é pouco hoje em dia. Se não cumprir como lhe mandaram, com certeza, vai ser penalizado e pode perder o ganha pão. Ele vai lá e faz o serviço sujo, barra o menino, assim como o diretor recebeu a ordem lá do reitor e a acata de cabeça baixa, repassando para frente com as mesmas palavras recebidas. Esse o jogo cruel do capitalismo, do neoliberalismo predatório, o que obriga as pessoas a se vergarem e fazer o serviço sujo sem ter como negar de fazê-lo. Negar, sabemos, tem como, basta o diretor dizer que não vai cumprir o que recebeu como ordem, pois é desrespeitoso com o trabalhador e com as leis ainda vigentes, mas não o faz. O mesmo se dá com o segurança lá do shopping, que recebe ordem de impedir meninos de rua de entrarem no shopping e "molestar" (sic) clientes. Ele pode deixar os meninos pedir, mas se o fizer vai se danar.


Perceberam a crueldade em jogo? Todos estamos encralacrados e num beco sem saída. O golpe é um sucesso, pois para garantir o ainda possível emprego, a repetição de situações como essa. Isoladamente poucos são os ainda em condições de reagir, mas coletivamente, uma única possibilidade. Sem organização nada ocorrerá e estaremos cada vez mais subservientes ao cruel e insano sistema. Encerro com mais uma da universidade ainda pública, a Unesp, acabando de receber uma norma interna onde o aluno que se considerar apto e tiver conhecimento suficiente, poderá abrir mão de cursar as disciplinas. Ele entra para cumprir um currículo, mas se achar conveniente não precisará mais cursar as matérias. Isso é a precarização na sua essência, no que tem de pior. No próximo capítulo vão pedir para o último na sala apagar a luz. O país caminha a passos largos para um dos momentos onde a tristeza vai tomar conta de todos nós, além do desespero, pois todos estaremos num mato sem cachorro. Ainda dá tempo de virar essa mesa, mas precisamos saber quem ainda de fato está disposto a arriscar a pele e ir pra luta. Quem mesmo?


2.) ALGO DA BURGUESIA BAURUENSE
Gilberto Maringoni ao produzir uma crônica nos 90 anos do nascimento de sua mãe, mostra junto algo da burguesia bauruense. Ir sacando as entrelinhas de seu escrito não tem preço. Histórias como essas são mais reveladoras que muitos livros sobre nossa terra e gente. Muita coisa existe para ser revelada, descrita, contada sobre o que de fato é essa Bauru em suas entranhas. Aproveitem para conhecer a mãe do Maringoni.

SERIAM NOVENTA, HOJE - Isso aí deve ser 1952-53. Ela está com 24 anos. Uma empresa de confecções do Rio planejou um desfile no Automóvel Clube de Bauru e chamou moças da cidade para exibirem os lançamentos da temporada. 

Numa cidade interiorana de 65 mil habitantes, fronteira do progresso em direção ao Mato Grosso e mentalidade acanhada, a convocatória deve ter causado frisson. Ela, alta, bem criada e sem muito o que fazer, como acontecia com as senhoritas de classe média do tempo, levou toda a sua timidez para a passarela.


Dona Thereza, duas décadas depois, literalmente detonava aquela vida de pequena burguesia provinciana. "Os filhos homens de quem tinha posses iam estudar em São Paulo, os pobres se esfolavam de trabalhar aqui, e as filhas ficavam esperando marido. Besta de tudo".

O casamento com um paraense fascinante, falante e faroleiro, que envergava terno branco no clima saariano do interior paulista, a busca por uma profissão - tornou-se advogada aos 45 anos - e a necessidade de botar comida em casa quando o pequeno escritório de eletrodomésticos de meu pai foi a pique, no final dos anos 1960, mudaram paulatinamente sua vida. Sua vida e suas ideias.

O que a fez manter o prumo foi literalmente um certo otimismo da vontade, uma voracidade implacável de leitura e um inconformismo salutar. Ela me apresentou “Cem anos de solidão” e uma fieira de autores latino-americanos e franceses ainda no início de adolescência. Comprava materiais de desenho, mesmo sem um tostão em casa, para que eu desenvolvesse uma habilidade que também era sua. Ao mesmo tempo, botava pilha em meus irmãos.

O curioso é que o espírito juvenil lhe veio com a maturidade e a velhice. Vibrou quando descobriu ter nascido um dia antes de Che Guevara. Literalmente detonava alguns antepassados de mentalidade escravocrata. “Me dá ódio pensar naquela gente que falava barbaridades como ‘negro de servir’ e ‘negro de produção”. Ouvidas na infância, essas coisas nunca lhe saíram da cabeça. Herdara pose zero de uma linhagem pseudo aristocrata em decadência. “Parecemos os Buendia”, me dizia em tempos que cortavam a luz de casa, referindo-se aos personagens de Garcia-Márquez. “Eles usavam louças coloniais, pratarias de família e no prato nunca havia nada”. Exagero. Nunca passamos fome, mas a caricatura a divertia.

Meu pai morreu há quase trinta anos. Aposentada, decidiu viver sozinha em Bauru, o que dizia adorar. Tinha um irmão-parceiro – que se foi há pouco -, interlocutor constante. Com hábitos modestos, economizava para viajar. Um dia me avisa: “O que você quer de Nova York? Vou semana que vem”. Para uma interiorana de quase 70 anos, era um feito. Ia sem companhia, longe de excursões e não se apertava em inglês, italiano e espanhol.

Morreu como um plóc de bolha de sabão. Aconteceu no dia em que resolveu mudar de lugar os móveis de seu pequeno apartamento. Empurrar guarda-roupas e estantes, vindos do casarão onde passou a maior parte da vida, foram demais para um coração que nunca rateara. Foi-se aos 72, em 2000.

Sempre pensei comigo que ela adoraria ter circulado por seu velório. Veio gente de toda parte, sumida havia décadas, amigos, parentes, conhecidos, colegas de trabalho, num entra e sai sem pausas. Uma incrível sessão de reencontros.

Minha mãe faria 90 nesse 13 de junho. Não acredito em nada, em espíritos, em vida pós morte, em reino dos céus, destino, nosso senhor, espírito santo, nada disso. Morremos, acabou. Ficamos naqueles que nos querem bem.

Mas hoje me deu uma saudade...

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