terça-feira, 5 de junho de 2018
DROPS - HISTÓRIAS REALMENTE ACONTECIDAS (156)
SEIS NOTAS ESPARSAS RECOLHIDAS EM INSÓLITOS LUGARES POR ESSES DIAS Causo 1 – Um amigo prestou serviço cultural para uma Prefeitura. O evento ocorreu dentro do combinado e na sequência, algo sobre o pagamento. Quando a vida transcorre dentro da normalidade, o pagamento sai entre duas e três semanas, após tramites e procedimentos normais. Aguardar faz parte do negócio. Difícil mesmo é nos dias de hoje, quando os eventos rareiam e esse dinheirinho chega para cobrir buracos existentes, tudo já contabilizado, gasto antes de entrar no bolso. Ao tentar apressar o recebimento, além do stress, algo mais exposto, o de como estamos precarizados. A necessidade faz a cobrança ocorrer de forma imediata e acompanhar o recebimento algo remoendo as entranhas, aumentando gastrites e afins. Disso tudo, a certeza, o que mais se vê pela aí hoje, em todas as instâncias é algo bem simples, o de se estar “vendendo o almoço para pagar o jantar”. E alguns dizem estarmos em plena recuperação econômica.
Causo 2 – Num bar da cidade com música ao vivo ouço o cantor executar seu trabalho com um repertório dos mais auspiciosos, cantando maravilhosamente João Bosco, Chico Buarque, Gonzaguinha, Taiguara, Beth Carvalho, Elis Regina e se bobear até Geraldo Vandré. Na vida real o vejo apoiando a crueldade do golpe e rejeitando tudo o que foi feito no passado pelos governos petistas. Fico boquiaberto, diria estupefato em como consegue, que mágica é realizada para cantar tão bem uma canção como as do Chico e defender com unhas e dentes o neoliberalismo em curso. Ou não entende o que está a cantar ou se finge de morto, chuta a vida para a frente como se vivêssemos mesmo num paraíso, totalmente à parte do que ocorre diante dos nossos olhos. Nas letras desses citados muito da inconformismo que deveria pulsar em nossas ações.
Causo 3 – Sento num restaurante para almoçar e diante dos olhos, do outro lado da calçada um grafite pintado na parede de um estabelecimento comercial, ocupando toda a parade central, “Wedding Day” (Dia do Casamento). Questiono minha cara metade sobre como incorporamos muitas frases em inglês no cotidiano de nossas vidas e ela me faz questionamentos mais que instigantes: “Não tenho uma opinião formada sobre o assunto, pois essas gerações que vieram depois de nós perderam muito das referências em português. Tudo é em inglês, pensam e escrevem nessa língua. Nasceram num momento globalizado, uma geração onde tudo gira em torno do inglês. Entre eles não existe mais referência de base em português e não sei se temos o direito de querer brasilizar a questão, pois perderam essa referência. Vejo isso bem nítido na forma como os estudantes de hoje tratam o assunto. O escrito na parede passa batido, normal para eles todos”. Me ponho a pensar sobre tudo, encaraminholando meus pensamentos.
Causo 4 – O vinho chega na mesa ao lado e me divirto com a forma como o cara que se diz entendido em beber em lugares como esse, mesas praticamente encostadas uma com as outras. Ele cheira a bebida, gira ela num sentido estudado, leva aos lábios comedidamente e mesmo não tendo sentido variação nenhuma a aprova. Lembro-me de frase de Lévy-Strauss, quando lecionou nos anos 30 na USP, sobre os senhores paulistanos: “Eles se acham muito civilizados e não sabem como são típicos”. Essa turma, sei, gostam mesmo de Miami e adjacências. Beber vinho nesse país monstruosamente desigual é algo surreal. Não entendo quase nada de vinho e bebo sem querer distinguir algo grandioso a diferenciar um de outro. Fico vendo esses tantos “manobrando em voos circulares arriscados um cálice que chamam de taça, na patética tentativa de parecerem o oposto do que são” (Mino Carta). Quanto mais vejo a cena, mais me dá vontade de pedir ao garçom um copo, desses simples e beber meu vinho sem salamaleques.
Causo 5 – Falar empoado é sinal neste país da pessoa ser detentora de conhecimentos grandiosos. Os que assim agem são considerados intelectuais. Usar palavras de difícil pronunciamento te abre portas. Elas podem não dizer muita coisa, mas aqui nesse rincão demonstram por detrás delas estar uma pessoa das mais inteligentes. Observo a fala de um vetusto que baixou tempos atrás nessas plagas e hoje é consultado para tudo. Diz e diz, maneira clássica de não se posicionar a contento. Por fim, não decifro o que disse e nem se foi a favor ou contra, mas impressionou a todos. Ser moderno é uma delícia, pois o gajo falante segue envolvendo a todos e laureado por onde passe. Vou decorar palavras difíceis para meus escritos, daí convenço mais incautos e fico famoso.
Causo 6 - A vendedora na loja de cortinas e papéis de parede me diz estar vendendo demais uma nova estampa para os abastados da aldeia bauruense, a dos "Tetos de Paris". Me diz que os moradores de condomínios adoram ter em seus lares a foto com as casinhas parisienses ao fundo, na maioria das vezes na sala principal de suas casas. O que eles não sabem é que, na imagem mostrada a mim, vejo algo além dos tetos, mas sim a de uma região onde o predomínio são o de cortiços, aqueles amontoados humanos morando em cubículos apertados, no máximo sala, quarto e banheiro, quando muito os três. Nesses grandes centros viver próximos aos centros é não fazer questão de estar em verdadeiras pocilgas, pois é o que conseguem pagar com seus parcos salários. Abundam latinos e asiáticos nesses lugares. A foto é realmente linda, mas a realidade lá embaixo é cruel, insana e isso, talvez nem passe pela mente de quem a exponha como um troféu na sala de sua casa.
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