segunda-feira, 5 de agosto de 2024

FRASES DE LIVRO LIDO (204)


“PÉROLA”, O LIVRO DE MAURO RASI E ALGO DA FAMOSA CASA NA RUA BANDEIRANTES – INEVITÁVEIS COMPARAÇÕES COM A BAURU DE HOJE, ENFIM, MUDOU MUITA COISA?
Reler Pérola, o livro, peça teatral de Mauro Rasi é mais que uma pérola. Tendo como pano de fundo a Bauru vivenciada pela família Rasi, tudo na voz de Mauro e, além do saboroso de sua escrita, algumas citações bem ao estilo da necessária picardia, fina ironia de como enxergava a cidade onde nasceu, viveu até sua maioridade e depois, a mesma acabou se tornando pequena demais. Quando a enxergou provinciana e sem condições de sair do estado letárgico, chata pra dedéu, bateu asas e foi ser gauche na vida. Ganhou o mundo, principalmente o Rio de Janeiro, que o integrou rapidamente, pois qualidade e verve não lhe faltava. Porém, nunca abandonou sua cidade natal, a retratando em suas crônicas, primeiro para O Globo, depois imortalizada nos livros. Pérola foi só um deles, a sua peça mais famosa e vitoriosa.

A casa onde Pérola e Vado – como denominados na peça – viveram continua em pé, tombada pelo patrimônio histórico, porém fechada, lacrada para tudo, inclusive visitas. Os herdeiros da família Rasi, a filha, no livro intitulada Elisa e Danilo, seu marido, evangélico, retratado no livro como um sem querer pegar no pesado, porém evangélico. Não sou eu quem afirma ser ele grosseiro, mas o livro, pois assim Mauro enxergava o cunhado. Este, com certeza não o perdoou, pois após o falecimento de Mauro, espólio aos cuidados da irmã, lacre nos portões e nas informações.

Intrigante como Mauro descreve a casa na rua Bandeirantes, a tal com piscina. Logo na abertura do livro: “Um sobradinho espremido à esquerda por duas velhas casinhas geminadas, e à direita pela casa vizinha, de onde brota um enorme abacateiro. Este sobrado, construído em terreno estreito e de pouca frente, tem a forma de um funil, abrindo-se nos fundos para um magnífico quintal onde está instalada uma moderna piscina. É o espaço nobre da residência, onde ela respira. Tudo nesta casa giram em torno do quintal e da piscina”. Logo depois mais um deliciosa revelação: “um sobradinho sem estilo definido, onde nada combina com nada; pedra-portuguesa, pedra-são-tomé, azulejos, pastilhas, cerâmicas, lajotas! Tem de tudo. Parece uma exposição de material de construção”. Ou seja, uma casa que é um maravilhamento só possível pela cabeça de seu dono, Osvaldo Rasi, um comerciante, se não comunista, sabendo como enfrentar fascistas. Briguento por natureza.

Mauro faz questão de ressaltar o pai com essa verve de garra e luta: “Que é que eu posso fazer? Puxei seu avô: sou um idealista. Seu pai podia ter ficado rico, milionário, porque o que recebi de proposta para... mas eu nunca me vendi! Que cê quer que eu faça? Fui educado assim, pelo seu avô. Seu avô tinha caráter, tinha fibra”. Num trecho cita o enfrentamento que o pai fazia dentro da conservadora Bauru: “...a italianada aqui era tudo fascista, marchavam aí na rua Batista cantando, La Giovinezza. (...) E o pai tinha na parede um retrato do MAteotti... deputado socialista assassinado pelo Mussolini. (...) esse retrato ficava pendurado na parede da sala... e ele, então, deixava a janela aberta que era para provocar os camisas-pretas”.

Escreveu mais. Num outro trecho, ainda sobre o avô, dito pelo pai: “A polícia do Getúlio vivia prendendo ele; ele, então, descia a rua Batista a pé, até a cadeia, cumprimentando todo mundo, de chapéu, cabeça erguida, levando o colchão e a escova de dentes. (...)papai não punha os pés na Sociedade Italiana, que era tudo fascista”. Ou seja, o livro não é só sobre Pérola, mas retrata toda a resistência e luta dos primórdios da família Rasi. Portanto, o jeitão como Mauro descreve Bauru é mais do que delicioso, diria mesmo, revelador. São citações para desopilar o fígado. Feitas por quem soube ser atento observador. Deve ter sido uma pessoa muito contida enquanto viveu em Bauru e se soltou mesmo quando se foi.

A casa continua lá, a piscina idem, mas poucos sabem em que condições. Ele cita algo dela, dito pelo Vado, o pai: “Tínhamos um terreninho; só quatro metros e meio de frente. (...) ) carro entra assim, ó, raspando. Em vários momentos ressalta: “A parte mais importante da casa é o quintal, onde foi construída a piscina”. Valeria muito a pena recuperá-la, devolvendo-a para para alguma utilização, mas creio, com o passar dos anos, cada vez mais difícil.

Releio o livro (editora Record RJ, 1ª edição, 1995, 144 páginas) após mais de uma década da primeira vez. E revejo assim, não só a cidade de antanho, mas muito saudoso do velho Osvaldo Rasi, que conheci e conversei por várias vezes. Ele e outro morador da mesma quadra, seu Osvaldo Penna, barbarizavam a cidade, mesmo não se entendendo muito bem. Não tive o prazer de conhecer Mauro pessoalmente, mas li tudo dele. O trecho relembrando a Bauru fascista – hoje até mais que antes – é um primor. O velho Rasi e tantos outros na época não tinha medo nenhum de enfrentar a bestialidade fascista. Valorosos cidadãos.

Ele fazia questão de ressaltar o provincianismo bauruense, como no trecho: “O que me espanta é como ele (o marido da personagem Isolda, uma de suas tias) conseguia esconder que tinha outra mulher e três filhos durante todos esses anos, numa cidade tão pequena como Bauru”. Do cunhado evangélico, Pérola crava: “Elia, tanto estudante em Bauru, tanto moço bom fazendo Direito, Odontologia, Medicina... você tem que arrumar essa porcaria!”. Logo a seguir, na voz de Emílio, o próprio Mauro: “Elisa tornou-se evangélica por causa do marido. Ele não deu certo em profissão nenhuma. (...) Se ela tivesse se tornado Hare-Krishna eu até entenderia; mas crente...”. E depois na voz de Pérola, uma pérola: “Cada um tem a sua religião. Mas eles acham que a deles é a certa”.

O livro é uma delícia do começo ao fim. Reli quase numa só sentada hoje durante o dia, enquanto aguardava ser atendido em consultório médicos. Num trecho, Pérola diz do filho: “Esse aí não se acostuma mais com cidade pequena”. E o que dizer de nós, os que vivemos nela uma vida inteira. Não é só pequena no tamanho. Novamente na voz de Pérola diz algo mais da cidade: “Sua avó abafou tudo, com a ajuda de um juiz que era muito amigo do papai, tanto é que nos jornais de Bauru não noticiaram nada, nem uma linha”. Algo parecido, continua acontecendo até os dias de hoje, daí, subtendendo-se que tudo continua sem grandes mudanças na Capital da Terra Branca, também Terra do Sanduíche. No começo do livro, a explicação para tudo o que foi lido: “O teatro é, paradoxalmente, a arte da mentira. Inventam-se tramas para contar histórias que se pareçam com a vida, mas que não são a própria vida”. Entendam tudo como quiser. Mauro Rasi nos faz pensar muito sobre a cidade de Bauru e isso, por si só, é muito instigante e provocante. Então, pensemos...
Em tempo: Pérola foi o meu terceiro livro lido neste mês de agosto.

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