UM FÉRREO ENCONTRO
Bauru não é somente a terra do famoso sanduíche, do astronauta ou onde Pelé começou a jogar futebol. Um famoso entroncamento ferroviário fez história e gerou boa parte do progresso atual da cidade. Noroeste, Sorocabana e Paulista cruzaram linhas aqui. Sede administrativa da Noroeste do Brasil por muitas décadas, belas edificações foram construídas na cidade. Numa delas, "a mais bela estação ferroviária do interior paulista"(palavras do escritor araraquarense Ignácio de Loyola Brandão), fechada há uma década e meia, desde a privatização das ferrovias brasileiras, acontece o I Encontro Histórico Ferroviário e de Ferromodelismo de Bauru, entre os dias 27 e 28/09, movimentando o setor e gente interessada pelos destinos da ferrovia brasileira.
A cidade com pouco mais de 370.000 habitantes, demonstra ainda pulsar ferrovia e durante os dois dias, motivado por forte e decisiva contribuição da mídia local, arrastou para as instalações da gare da estação e do museu ferroviário, mais de 5.000 pessoas, numa evidente demonstração de que o tema continua atraindo muita gente, principalmente numa cidade com fortes laços aos trilhos. "Compramos a idéia desde o início, pois eventos envolvendo a ferrovia possuem a cara da cidade. Fizemos a nossa parte e junto a um belo produto, ajudamos a reviver o passado, que envolve a todos por aqui", diz Renato Zaiden, diretor do Grupo Cidade, capitaneado pelo Jornal da Cidade, que massificou a divulgação do Encontro e era de um contentamento de dar gosto com o sucesso ocorrido.
Uma programação festiva atraiu as pessoas. Com duas composições férreas estáticas, paradas na gare, uma antiga, a da Maria Fumaça, do projeto Ferrovia para Todos e outra, em atividade, da ALL – América Latina Logística, concessionária da malha ferroviária no interior paulista, pessoas entravam e saiam dos trens. Viagens não foram programadas, mas o entra não parou um só instante. Mesas com maquetes de ferromodelismo, vindas de várias cidades da região fervilharam o interesse popular. "O ferromodelista é antes de tudo um apaixonado por ferrovia. Na impossibilidade de ter uma locomotiva em casa, possui réplicas em escala. Eventos como esse servem para quebrar um hiato. O hobbie é praticado por pessoas com mais de 40 anos, pois os mais jovens não tiveram contato com a ferrovia. Queremos apaixonar essa nova geração e toda tentativa de aproximação é válida", explica o engenheiro Ricardo Bagnato, 46 anos, diretor da Associação Ferromodelista de Bauru, um dos organizadores do Encontro, juntamente com a Prefeitura Municipal de Bauru.
O artesão bauruense Chico Cardoso trouxe duas réplicas de locomotivas de madeiras sob rodas e foi uma das coqueluches. Pais empurravam seus filhos pelo espaço todo. "Meu filho não sossegou enquanto não andou nesse trenzinho. E ele produz um som igual ao do trem de verdade. Voltei no tempo e viajei com ele", disse a professora Miriam Palotta. Logo ao lado, numa longa plataforma coberta, foram montados dois trilhos paralelos, ambos feitos artesanalmente por seus idealizadores. José Leonel Damasceno, o Léo, 47 anos, metalúrgico, criou a FerrLeo (http://www.ferrleo.com/), expõe de forma fixa numa praça pública em Ribeirão Preto, onde mora e abrilhanta eventos Brasil afora. É didático, principalmente com as crianças, dando noções sobre ferrovias, sua história e sobre o funcionamento das locomotivas. Como bom mineiro, não perde tempo e conta suas histórias. Pergunta a uma visitante se ela sabia uma única vez que o mineiro não se utiliza da palavra trem para algo. Diante da negativa, diz ser para o próprio trem e explica: "Na estação, com mulher e filhos, pergunta pelo horário de saída e tendo a resposta, corre para a esposa: Muié, junta os trem, que o bicho vem vindo".
O menino Vitor Franco de Souza, 9 anos, demonstra ter aprendido a lição. Léo o deixa monitorar o funcionamento da composição e diante de uma repórter da TV, deixa claro ter assimilado os ensinamentos. "Isso aqui não é um brinquedo. Aprendi como funciona uma locomotiva e que ela é um meio de transporte mais eficiente que o carro", diz. Juntinho, outra mini-ferrovia, essa mais minuciosa e detalhista, obra de pura dedicação dos irmãos Arnaldo e Pedro Bottan, de Lençóis Paulista. Aposentados, sem vinculação familiar com a ferrovia, constroem a mais de dez anos verdadeiras obras de arte, réplicas perfeitas de antigas locomotivas. A trazida para Bauru tem uma caldeira igualzinha a original, parada na gare, ambas movidas a lenha. Encantamento geral, propiciando passeios disputadíssimos num trilho de 60 metros de comprimento. "Uma senhora veio me dizer que seu filho esperava por mais de meia hora. Respondi que demorei oito anos para terminá-la, mas que com um pouco de paciência, sua hora chegaria", diz Arnaldo Bottan, praticante da modalidade denominada Vapor Vivo, que acaba de ser capa da Revista Ferroviária(http://www.revistaferroviaria.com.br/). Não pararam um só instante, numa ação que eles mesmo denominam de "quebra-ossos", tal a intensidade do senta-levanta.
A revista estava num estande instalado no local, demonstrando que nem tudo ali era festa. Muita coisa séria estava sendo discutida e apresentada aos visitantes e interessados. A ABPF – Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (restauro de composições férreas), a Fundação Romi (restauro estação de Santa Bárbara D'Oeste), a ALL (segurança férrea e inovações no setor), o Serra Verde Express (passeio férreo de Curitiba-Paranaguá) , Estação Kafé (posto de combustível com temática ferroviária), a Frateschi Trens Elétricos (miniaturas de ferromodelismo) entre outros, marcaram presença, todos com resultados práticos em quesitos voltados para a causa. Inovação mesmo quem apresentou foi Sebastião Pereira da Silva, 80 anos, da INJ Plastic, de Bauru, tentando implantar no setor os dormentes reciclados de plástico, ecologicamente muito mais recomendáveis do que os de madeira e concreto. "Para os céticos, além dos certificados já conseguidos, atestando sua eficiência, dou garantia de 500 anos, mais dez dias", diz o sorridente criador da idéia, perseguido político em 64 e criador da Plasútil, uma conceituada indústria de embalagens plásticas.
Ferroviários circularam por todo o local, demonstrando a cada abordagem a tristeza com os destinos dados à ferrovia no país. No sábado um se destaca, Waldemar Alves da Silva, 80 anos e há 35 aposentado na função de maquinista da Noroeste do Brasil. Tirou do armário seu velho paletó e quepe de trabalho, vindo desfilar entre os presentes com o fardamento alinhado, do qual não se separou esse tempo todo. Vendo-o na TV à noite, o gesto foi repetido no domingo por outra dezena deles. Não houve quem não se emocionasse com a cena. O fluxo de pessoas foi tão intenso que a Microlins, também patrocinadora, enviou alunos do seu curso de Turismo para ajudar na monitoria aos visitantes. Maria Leoni, 67 anos, telegrafista aposentada desde 1988 montou no local um aparelho e o colocou para funcionar, formando fila de interessados em tão remoto meio de comunicação.
O advogado Luiz Carlos Rosseto Curvelo, 67 anos, trabalhou somente 5 anos na ferrovia e me puxando pelo braço, fez questão de mostrar o local exato onde havia trabalhado, na Secretaria Geral da Estrada de Ferro, nos idos de 1955. "Eram gente muito exigente. Aprendi aqui tudo o que sei hoje", resume ele, empunhando a velha carteirinha de ferroviário. Ele foi entrevistado pelo projeto de Memória Oral, realização do Cine Clube local, captando depoimentos de ferroviários que circulavam pelo museu. O museu permaneceu lotado durante todo o tempo de visitação, com gente saindo pelo ladrão. Outro que por lá passou foi Lourival Custódio de Lima, 55 anos, gravando seu depoimento e sendo sorteado com um brinde do evento. Não se conteve, pediu para fazer uso do microfone e tascou uma mágoa guardada no peito. "Isso que fizeram com nossas ferrovias é um verdadeiro crime. Privatizá-las foi um crime. Eu me arrepio só de entrar nessa estação. O Lula precisa olhar com mais carinho para isso tudo", ressaltou um exaltado Lourival.
Numa sala dentro da gare, onde décadas atrás havia sido um restaurante, depois uma agência bancária, foi instalado uma Sala de Vídeo, com projeções ininterruptas de filmes voltados para o tema. No domingo, quando as portas principais já haviam sido cerradas, foi difícil desligar os equipamentos, pois muitos insistiam em ali permanecer. Pediam mais. Quase ao final do evento, Rodrigo Rocha, da ALL, liga a locomotiva da empresa. A fumaça e o barulho aumentam a curiosidade. Buzina a "louca", como ele carinhosamente chama o modelo U20-3915. Do outro lado da gare, o maquinista Geraldo Pires, apita a locomotiva Maria Fumaça a vapor 278, modelo fabricado nos EUA em l919. Foram minutos de muita agitação, com palmas ecoando por todos os lados.
Os portões foram fechados no domingo por volta das 17h30, porém muitos por lá permaneceram até anoitecer. A aparato ia sendo desmontado, maquetes e estandes encaixotadas e muita gente não arredava pé. A loja da Rio Grande Hobbies, de São Paulo foi uma das últimas a fechar, tal o movimento. A locomotiva da ALL saiu da gare sob aplausos e flashes. "A ferrovia não merecia o destino a ela traçado no Brasil. E se não voltar por bem, terá que voltar pela necessidade. Não dá mais para viajar para os grandes centros urbanos de carro, é burrice", conclui um emocionado Eudes Soares Nóbrega, 51 anos, médico cearense radicado na cidade, resumindo o pensamento da maioria dos presentes.
Henrique Perazzi de Aquino, escrito de uma só talagada em 30/09/2008.
7 comentários:
O encontro realmente foi muito bom. Nao saiu dos trilhos.
Perazzi
Belíssimo texto. Uma verdadeira reportagem cinematográfica que alegra mas que ao mesmo tempo nos faz sentir como o progresso (ou o pseudo progresso) consegue impiedosamente matar sangrando um tempo que se recusa a morrer.
Um abraço grande e parabéns
Marco Antônio de Souza
(que já viajou para São Paulo de trem, que já comprou muito Tico-Tico na revistaria da estação e que não se conforma com o lixo que virou nossa belíssima estação ferroviária)
Valeu, Valeu, Valeu...
João Francisco Tidei de Lima.
henrique tudo bem !!!!!!!!parabens pelo textos e fotos que vc divulga
mario roberto cândido
MUITO LEGAL ESTA MEMÓRIA ORAL, MEU CARO HENRIQUE.
VC TEM MUITA CRIATIVIDADE PARA DESCREVER OS FATOS E CONCILIÁ-LO COM AS FOTOS.
GRANDE ABRAÇO,
ADEMIR ELIAS - JORNALISTA.
Henrique que lindo, adorei....
Parabéns....
beijo,
Maria José de Mello Souza (Zezé)
bons tempos... saudades da maria fumaça.. é bom rever essa entrevista que eu dei e matar a saudade um pouco :/
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