sexta-feira, 14 de novembro de 2008

MEMÓRIA ORAL (53)

À PROCURA DO CAIPIRA PERFEITO
O caipira somos todos nós, os que vivem no interior brasileiro. Pelo menos é assim que continua sendo entendido para muitos, a definição do termo. A diferença é que hoje, a grande maioria se orgulha quando assim é denominado. Dentre toda essa legião de assumidos caipiras, um deles foi para São Paulo há mais de quarenta anos, fez o mundo, conheceu o sucesso, mas não consegue se desvencilhar do lado de cá. Volta sempre que a saudade aperta, largando tudo, mulher e filha permanecendo na capital, viaja de ônibus uns 500 km de distância, tudo para se recarregar de caipirice. Esse caipira é Fausto Bergocce, 56 anos e sua cidade natal é Reginópolis. Não consegue ficar mais que dois meses longe do torrão natal. E vem fazer o que nessa cidadezinha de quase 5000 habitantes, encravada no sertão paulista? É isso que uma trupe de bauruenses, também caipiras, quer descobrir.

Eu, 48 anos, professor sem cátedra, tentando escrevinhar histórias, dando uma de memorialista, Dalva Aleixo, 47 anos, professora da UNESP Bauru e estudiosa de cultura popular e Wellington Leite, 29 anos, jornalista e radialista, além de amante das coisas simples e do bem viver. Saímos de Bauru no domingo, 09/11, logo depois das 8h e partirmos para constatar mais um retorno do Fausto ao interior. Logo na chegada, o encontramos caminhando numa antiga trilha atrás do Hotel Pousada onde se hospeda. Fez questão que fossemos ver o tamanho de uma imensa mangueira, postado aos fundos do hotel. Dalva desde o início se mostra uma profunda conhecedora de plantas, pois a cada contato vai identificando cada uma delas, além de já ir diagnosticando sua utilidade (arnica, manacá, erva cidreira, fumo...). Fazia questão de que tomássemos contato com o cheiro de cada uma delas. Isso durou o dia todo, pois a cidade possui de tudo plantado pelos jardins de suas casas. Uma riqueza de cheiros e cores.

A simplicidade e a grandiosidade do Fausto e a relação de amor com sua cidade, nos faz deixar o carro estacionado e caminhar. Descemos pela rua, onde está localizada a casa onde nasceu. No caminho uma outra, abandonada, na esquina das ruas Padre Jeremias e Miguel Raduan. Ali ele nos mostra duas pinturas feitas na parede de entrada. “São do Baccan, olhe a assinatura e o ano em que fez, 1955, dá vontade de comprar a casa só para preservar isso tudo. Esse pintor é muito famoso nessa região, depois foi para Bauru e se firmou. E esse quintal limpo, tudo no lugar, não é um encantamento?”, diz Fausto, com a concordância de todos. Quem aparece é o morador do terreno ao lado (depois ficamos sabendo tratar-se de um sítio, bem no meio da cidade), seu Zuel Veloso, 44 anos, orgulhoso do quintal: “Ganhei até um prêmio da Prefeitura, uma cesta básica, pelo quintal mais limpo, por causa da dengue. Nasci aqui e essa casa que vocês gostaram está fechada há 22 anos”.

Passear pelo seu jardim, todo florido e colorido é uma grandiosidade. Uma pomba-rola circula calmamente por ali. “Meu pai me ensinou a descobrir codorna no meio do mato. E além disso, quando moça tinha o apelido de pomba-rola, por ser bonitinha e docinha. Só depois é que virei leoa”, diz Dalva rindo. Fotos do quintal e da sala do seu Zuel são inevitáveis, pois retratam o interior de uma forma como só visto em fotos. Fausto nos carrega rua abaixo, esbarrando em cada casa com uma planta diferente plantada nas calçadas. Na quadra de baixo a única coisa que destoa da caipirice procurada, a Loja Tatico, do próprio Tatico e da Lourdes, fica num canto escondido da cidade, mas tem tudo o que você encontra numa cidade grande. Ninguém esperava encontrar algo parecido por lá. “O casal vem aqui e não tem tempo quente, ela se distrai com roupas, presentes, a criançada com os brinquedos e o homem com os artigos de pesca”, diz o Tatico. Dalva sai com um penduricalho nas orelhas, instalado no ato.

Voltamos ao carro, pois a caminhada seguinte era distante. A Rádio Comunitária Rainha dos Anjos, FM 104,9, do Zé Rolinha e da esposa Cidinha. O espaço é um tanto kitsch, cheio de vidros espelhados na frente, com um auditório para os programas ao vivo, ao lado de um bar e no andar superior o único museu da cidade. “Preservo aqui a memória viva da música, com a reunião e exposição de minha coleção de LPs e fitas cassetes, distribuídos por temas e em estantes. “Não liguem para a sujeira, pois tem fuligem de cana espalhada por tudo quanto é canto. Não adianta limpar”, nos conta Cidinha. Um programa começa ao vivo, logo depois da transmissão de uma missa e todos os presentes dão o seu recado. Wellington e Zé Rolinha se confraternizam como dois locutores que são, um bem diferente do outro, mas irmanados na diversidade que os aproxima. E na caipirice.

Caminhando mais um pouco, Fausto nos faz conhecer um ídolo da infância, Renê Raduan, 69 anos, goleiro do Reginópolis Futebol Clube por 30 anos. Freqüentador assíduo de um bar, conhecedor dos costumes do amigo, que bate cartão ali diariamente às 11h e as 19h, paramos para um papo e uma cerveja. “O futebol lotava o campo da cidade, fui titular por 3 décadas e daqui não arredei pé, mesmo tendo convites. Baixinho goleiro só eu mesmo. Já, aqui no bar, tomo uma antes do almoço e outra após o jantar, mais que isso azeda, mas venho todo dia e sinto falta quando estou impedido”, conta Raduan, um professor aposentado de Educação Física, que ao lado de outro aposentado, o delegado de polícia Alzeu Gottardi, nos envolvem com suas conversas e aquele jeito gostoso de tocar a vida, sem pressa e nervosismo. Já quando a questão é política, Raduan tem um lado. Fausto lhe diz de outra amiga, candidata a prefeita derrotada. “Fausto você está fora, não sabe dessas coisas, bom é o meu lado, não o dela”, encerra o assunto, agora um resoluto Raduan. Para alegria geral, paga nossa conta e sai defininho antes que pudéssemos esboçar qualquer reação. Ele nos fez um mimo, pois descobriu que Dalva tinha sido professora de sua filha na UNESP de Bauru.

No restaurante Churrasco do Júlio, comemos todos por R$ 10 cada e a vontade. Na saída uma placa alerta para algo bem interiorano,“Todo último domingo de cada mês o restaurante não funcionará”. Uma foto com Fausto sentado numa pedra diante da casa onde havia nascido, isso mesmo, nasceu das mãos de uma parteira e a pedra continua no mesmo lugar, passados décadas e décadas. Não vai dar tempo para uma “ciesta”, mesmo o calor estando a mil e vendo redes espalhadas em várias áreas. Fausto nos carrega para a entrada da cidade, onde existe uma ampla área de lazer, uma espécie de praia, ao lado do Rio Batalha. Adolescentes se atiram de cima de uma ponte e ele me pede muitas fotos: “Quero retratar isso aqui em aquarelas. Olhe essa com seus troncos separados. Não lembra uma mulher com as pernas abertas?”, nos diz o imaginativo reginopolense. Não deu tempo de molhar os pés, pois ainda tínhamos dois lugares a visitar.
Em cidade pequena tudo é perto, mas “pero no mucho”, pois a próxima parada foi no cemitério local. Ele vai e vem por esses caminhos, todos feitos a pé, mas dessa vez fomos de carro. Fausto queria nos mostrar a simplicidade do lugar e o túmulo onde estão seu pai e avó. Na volta ainda passamos na casa da candidata derrotada nas últimas eleições, a Carola Veríssimo. “Sou amigo de todos, gosto muito dela, como gosto do Raduan, não queria me misturar nessas coisas, mas sei como se processam. Vou lançar meu livro infantil aqui em dezembro, convidei a ambos, mas sei que se um vier, o outro é capaz de não vir. Fazer o que? Isso não é exclusividade de gente de interior”, desabafa Fausto, já na viagem de volta até Bauru, quando vem conosco. Por fim, deu para entender, que a caipirice de Fausto é estar entre alguns que gosta, reviver lugares, pessoas, conversar fácil e sem pretensões, viver. Cansados, findamos tudo por volta das 17h. Deixamos o caipira na rodoviária, quando embarcaria de volta para a selva de pedra, ou melhor, o Reino da Não Caipirice.
Em tempo: Deu pra perceber que o título foi baseado num CD de Marcelo D2, "À procura da batida perfeita", que de caipira não tem nada. Ou tem tudo, sei lá!

5 comentários:

Michael Caetano disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Michael Caetano disse...

Deu até para sentir o cheiro da cidade... Reginópolis realmente é um desses lugares que nos fazem querer voltar e voltar... Saudade!
Além da saudade a surpresa: Seu René Raduan na Internet... quem diria heim pai?! Melhor ainda ver a minha mestra, professora Dalva dividindo uma cerveja com ele... cenas que só Reginópolis consegue produzir... Obrigada Fausto por nos conduzir pela cidade!

Anônimo disse...

Graaaande Henrique, poxa, assim voc\ê me mata do coração...fiquei arrepiado com otexto, nossa: não tenho palavras. Você é o cara. Obrigado por tudo. Já estou passando o texto paras os amigos de Reginópolis.

FAUSTO BERGOCCE

Anônimo disse...

Qual será a próxima parada, Henrique? Vamos mesmo pra Óleo? hahaha!
Abração!
W. Leite

Anônimo disse...

Domingo é um dia tão enfadonho. Convidem a gente para uma barca dessas...
Nico