sexta-feira, 6 de agosto de 2010

MEMÓRIA ORAL (91)

DEBATE, UM JORNAL LUTANDO PARA NÃO SER FECHADO *
A história do semanário “Debate”, de Santa Cruz do Rio Pardo, cidade com 40 mil habitantes a 340 km a oeste de São Paulo, ganhou destaque nacional após denúncias de irregularidades e benesses envolvendo o Judiciário da comarca. A Prefeitura Municipal mantinha uma casa, com aluguel e telefone pagos pelo erário público. Tudo foi escancarado em suas páginas. De uma irritação inicial, movida pela obrigatoriedade da revogação do privilégio, nasceu uma rixa e um enfrentamento. No final dos anos 80, após denunciar o desvio de um dinheiro depositado numa conta judicial em nome de uma massa falida, a antipatia cresceu. Um juiz e um promotor promoveram contínuos processos contra o jornal e o intuito era mais do que claro, destruir o jornal.

A partir daí inicia-se o inferno astral de Sérgio Fleury Moraes (nenhum parentesco com o policial torturador), editor, repórter, diagramador e fotógrafo (já havia sido no início impressor e entregador do jornal), que aos 17 anos, em 1977, funda o “Debate”, sob total influência de ares renovadores inspirados pela já agonizante ditadura militar. Desde o início, recusando as benesses do poder e o convívio amigável com os poderosos, rema contra a maré. No editorial da primeira edição um vaticínio que o persegue desde então, o de que “fazer jornal em cidade pequena é atividade temerária”. E continua sendo, visto os 127 processos (ganhou 123) abertos contra si, obra de um ex-prefeito e a atual situação, onde nenhum secretário municipal pode conceder entrevista direta ao jornal sem passar pelo crivo da Assessoria de Imprensa. Tanto o anterior, como o atual governo municipal são exercidos pelo PSDB.

Na sua batalha diária não sofre tréguas, pois enquanto vicejam país afora pequenos jornais totalmente atrelados ao poder municipal, ou vivendo exclusivamente de renda advinda de anúncios públicos, Sérgio insiste no lado oposto. “Sou um jornalista por convicção e um empresário por necessidade. O jornal sou eu, todas as semanas aqui, sem descanso. O segredo da minha independência é que faço quase tudo, menos me meter com a parte financeira e comercial. Não vendo anúncio. Nenhum jornalista do Debate faz isso. Existe um setor interno só para cuidar disso”, conta Sérgio num final de tarde, quase véspera do carnaval, revirando uma montanha de papéis espalhados em sua mesa de trabalho na redação do jornal.

A história do jornal é essa mesma. Sua credibilidade e o selo estampado em sua primeira página, “Século XXI Ano 33 – Uma voz livre em sua defesa” é a mais pura verdade. Continua primando pelo mesmo ideal de luta contra as desigualdades e pela democracia, igualzinho quando o jornal começou a circular. Foi amealhando ao longo desses anos inimigos irreconciliáveis, tudo por causa da postura combativa, de denúncia, investigação e seguidor fiel da verdade factual dos fatos. Nada mais que isso. Como se isso não fosse suficiente para lhe causar todos os problemas a lhe atormentar a vida.

O grande motivo do interesse e da divulgação do nome do jornal em nível nacional foi a indenização milionária, hoje arbitrada em exatos R$ 587.330,52, muito maior do que qualquer possibilidade de liquidação existente. Processos absurdos foram movidos contra o jornal, culminando com esse valor estratosférico para um pequeno jornal interiorano. Em 1996, no auge da crise, após ser condenado pelo crime de desobediência foi preso. Ali foi tentado e não vingou um tipo de censura no que poderia ou não ser publicado em suas páginas. Daí ocorre o ajuizamento de uma indenização milionária, correndo na justiça até os dias atuais.

Passou poucas e boas, primeiro quando cumpriu pena de sete meses em prisão domiciliar, intercalada com os dias numa sala burocrática de delegacia, onde permanecia trancado aos domingos e feriados. Chegou a entrar na redação do jornal, escondido dentro do porta-malas do carro do pai, correndo grandes riscos, tudo para fechar as edições semanais. Quase foi jogado num canil e na delegacia, ao lado, quase parede meia com o Fórum, ouvindo e percebendo sempre algo novo, tudo era despejado em novas matérias no jornal. A fúria do outro lado só crescia. O valor atual refere-se ao processo de danos morais movido pelo juiz e promotor, ajuizada em 1995 em 2.500 salários mínimos (hoje caiu para 1.000 salários), correspondendo há vários anos de faturamento do jornal. O processo serviu para que fosse discutido, no bojo da disputa, temas como ética, liberdade e principalmente, espírito de corpo.

Esse capítulo de uma real história de resistência ainda não terminou. Um novo está prestes a acontecer. A juíza Adriana da Silva Frias Pereira, também da comarca, está com o processo diante de si e o que Sérgio aguarda de forma ansiosa é o recurso impetrado pela sua defesa. “Entendo que ocorreu uma prescrição do processo. É minha última esperança. Pelo novo Código Civil a prescrição de uma ação é de três anos. A regra para os processos antigos é se passado mais da metade, aplica-se o antigo. Já se foram sete anos e não passou da metade, que está em dez anos. Sendo assim, luto pela prescrição. A juíza alega, baseada no artigo 202 do Código Civil, que quando a pessoa reconhece a dívida é interrompida a prescrição. Primeiro, nunca reconheci dívida nenhuma. Não é isso. O caso é rescisório e uma ação rescisória não pode interromper qualquer tipo de prescrição. Me apego nisso e acho que depois do Carnaval deve sair alguma coisa”, explica um nada resignado Sérgio.

Sua rotina não mudou em nada por causa dessas atribulações todas. O jornal vai muito bem, recheado de anúncios e tendo uma tiragem de 8.000 exemplares semanais, sem nenhum anúncio de Prefeitura, os tais editais, que são a única fonte de sobrevivência de muitos interior afora. O nome disso é credibilidade. O descanso da companhia é no dia em que o jornal circula, aos domingos. No máximo, a folga é estendida para parte da segunda-feira, depois tudo volta para a velha e boa rotina de trabalho. Na quinta que antecedia o Carnaval, a cidade quase às escuras por volta da 1h30 da manhã, uma luz continuava acesa no andar superior do prédio do “Debate”, justamente a sala do Sérgio. Sua noite estaria longe de terminar. Perguntado sobre o que poderá acontecer ao jornal na hipótese da decisão lhe ser desfavorável. “Faço minha fezinha toda semana”, me diz olhando para um maço de jogos de loteria recém feitos em cima de sua mesa. E assim ele segue, luz sempre acesa, vigilante e confiante.

* ATUALIZAÇÕES: Esse texto foi enviado para a revista Carta Capital em março 2010. Parte dele foi aproveitada em matéria de capa, publicada na edição da semana passada, "Censura - Um fantasma apenas" e ao abrir o Jornal da Cidade, aqui de Bauru, ontem, uma ótima novidade. Estampado em uma página interna uma nova decisão sobre o assunto, com o título "TJ suspende dívida que fecharia jornal de Santa Cruz". O texto está ao lado reproduzido (cliquem nele para sua ampliação). Solução definitiva ainda não está decretada, pois pode-se recorrer do veredicto. O texto inicial, que preferi não alterar uma vírgula e a decisão, saem nesse momento aqui no Mafuá. Torço pela causa do Sergio e do Debate, ambos verdadeiros "Heróis da Resistência".

4 comentários:

Wellington Leite disse...

Oi Henrique!
É assim mesmo: calar pelo bolso! É assim que o Daniel Dantas age no Brasil, intimidando economicamente quem aravessa seu caminho.
Pelo visto, serviu de exemplo para os poderosos da cidade natal de O Debate.
Uma pena
Abração
W.Leite

Anônimo disse...

Henrique

Essa história do Debate não pode nunca ser esquecida. Não pode cair no esquecimento. Ela retrata um Brasil que quer avançar e outro, que segura as rédeas.

Paulo Lima

Anônimo disse...

Henrique,

Essa é uma resposta para o vc, ou seja, se o processo foi movido em 1995, antes da alteração do CC e também do Código de Processo, dificilmente a petição inicial do Juiz reúne os requisitos que hj são exigíveis para um recurso ser enviado para o STJ (a norma processual que se aplica aos processos em tramitação é sempre a atual, mesmo que o processo tenha começado a 20 anos atrás), por isso, muito maior a chance do recurso (se interposto) ficar na vice-presidência por falta dos pressupostos processuais necessários ao seguimento do recurso. Diante disso, o autor (Juiz) ainda pode propor um "agravinho" para o STJ que, em geral, diante desse fato nega já direto (ou seja, só com voto do relator). Em geral, é isso que tem acontecido.
Bjs e parabéns pela matéria.
Letícia Andrade

Mafuá do HPA disse...

Meus caros e caras.
Recebi o email abaixo do Sérgio Fleury, do Debate, de SCRP. Reproduzo para verem como estou em estado de graça com as definições e um elogio recebido. O mafuá continua na ativa, atuante e perseverante:

Henrique:
Você já deve saber pela imprensa, mas VENCEMOS aquela ação do juiz. Foram 15 anos de muita luta, decepções e incertezas sobre a continuidade do jornal. E ela veio.

Gostaria muito de agradecer-lhe, pois a matéria na "Carta Capital" possivelmente foi preponderante para o resultado do julgamento. Veja só: o caso começou a ser julgado no dia 27 de julho, quando o relator e o revisor votaram CONTRA o jornal. Só faltava o voto do 3º juiz, que pediu vistas e adiou o caso para a última terça-feira, 3. Na melhor das hipóteses, eu perderia por 2x1. Definitivamente, a coisa iria por água abaixo. Era realmente o fim.

Retomado o julgamento, este juiz deu um voto tão brilhante (imagino!) que mudou o posicionamento dos demais. O resultado final foi 3x0, votação unânime! Ainda cabe recurso, mas acho muito difícil reverter esta decisão.

Por tudo isso, gostaria de dar-lhe um abraço qualquer dia. Eu sequer o conhecia há alguns meses, mas acredito que sua convicção a favor da liberdade de imprensa foi fundamental para reverter o jogo. E isto aos 45 minutos do segundo tempo!!!

Um forte abraço.
Saiba que aqui você tem um amigo e admirador.
Sérgio