domingo, 17 de dezembro de 2023

UM LUGAR POR AÍ (175)


CONHEÇAM ALGO DA SAUDADE DOS TRENS, CONTADO POR MANUEL ALVES, AGRICULTOR E TAPECEIRO DE CABRÁLIA PTA
Eu, por estes dias - e pelos próximos -, estou envbolvido dos pés à cabeça com um belo projeto, conquistado através da Lei Paulo Gustavo, desenvolvido na cidade de Cabrália Paulista SP, junto de um criativo e competente cidadão, Roberto Pallu, reconhecido personagem do mundo da propaganda e dematerial cinematográfico. Estamos lá, 24h do dia e da noite, finalizando um documentário a retratar um enfoque através, principalmente dos recursos da Memória Oral, com depoimentos diversos, particularidades da história daquela cidade. Particularmente, para mim, me vejo fazendo o que gosto e dando o melhor de mim. Circulo pelas ruas em busca das conversas que irão acrescentar o algo mais para concretizar o produto final.
Semana passada, eu e Régis, intrépido faz tudo, investido como fotógrafo e registrador de imagens, estávamos nas proximidades do que antes foi o pátio ferroviário naquela cidade, tirando fotos, quando vejo se apreximando um senhor com certa idade e como queria ter algo mais sobre os tempos da ferrovia na cidade, finalizado com a privatização no final dos anos 80, nada poderria ser conseguido com um jovem. Ele chega e lhe pergunto algo simples, se ele era dali e se tinha lembranças dos tempos da ferrovia. Sim, ele mora ali faz décadas e vivenciou os áureos tempos quando a ferrovia, Noroeste do Brasil, passava pela cidade. Pergunto se tinha saudades e seus olhos marejam: "Meu filho, tenho 72 anos e hoje para ir em Bauru buscar material para meu trabalho, preciso do ônibus e ele tem dois horários, muito distante de nossas necessidades. No tempo dos trens tinham pelo menos uns cinco horário, tanto de um lado como para outro. A estação que foi derrubada, movimentava essa cidade e trazia vida para todos nós. Perdemos isso e com isso, tenha certeza, a cidade ficou mais triste".

Sou arrebatado pelo jeito muito simples deste Manuel, um digno representante desta cidade, alguém que nunca fez parte do setor dos importantões do lugar, mas vivenciou toda sua história do outro lado, o dos trabalhadores e dos que suaram a camisa para ela ser hoje o que é. Eu começo a fazer, ali sem nenhuma programação a colheita de um rico material, para mim dos mais importantes, um digno Lado B - A Importância dos Desimportantes, depoimento surgido de uma trombada, de alguém que passava por ali exatamente no momento quando ali estava. Eu fazendo algo, ele outra, nos cruzamos, paramos e confabulamos. O inebriante do inusitado reside justamente aí, na possibilidade de num certo momento, sem marcar nada, se deparar com alguém cheio de boas histórias para serem postas para fora. Todos nós temos uma real necessidade de conversar e quando instigados, sai sempre algo muito aproveitável.

Seu Manuel não tem dados nenhum nas mãos, mas tem a vivência e isso, em certos momentos é o que mais importa. Ele se empolga com meus questionamentos e atésentamos num banco ali num corredor junto da calçada, ao lado de um muro que dá para o que sobrou de resquício ferroviário, um barracão, armazém com estilo e cara de todos os demais construídos ao longo da malha férrea. Do outro lado, ouvindotudo atentamente estava Régis, que fez algo mais além das fotos e nos filmou. Trata-se de um registro que o terei guardado para todo o sempre, como o de alguém, que conheci ali naquele raro momento e dele subtrai, de forma consentida, um novo conhecimento e além disso, uma conversa dessas onde o melhor de tudo foi a de possibilitar ser revivido algo dentro da mente humana, algo vivenciado e que nunca mais sai da memória das pessoas.

Régis me envia suas gravações e viajo na maionese, pois é como se tivesse reconstituido ali, algo muito além do propósito a que nos possilitou estar ali naquele momento. Uma conversa pra lá de proveitosa e, creio eu, nem será aproveitada naedição final do documentário, pois feita no improviso, nem a fala foi devidamente conseguida e preservada, enfim, não era este o propósito. Tudo foi alcançado de surpresa e, para mim, aí a grande riqueza desta vida, pois do inusitado, do não pensado e planejado, saem em alguns momentos, algo a abrilhantar o todo, talvez até a própria cereja do bolo. Aproveito aquela conversa para aqui, numa manhã dominical, revendo boa parte de tudo o que fizemos, com mais de 15 depoimentos já gravados, alguns longos, totalizando mais de sete horas de gravação, para se utilizando exatamente deste, encantador momento, para renovar meu propósito de vida. Ah, se pudesse, iria me enfurnar pela aí e ficar escarafunchando histórias de vida das pessoas mais simples, ouvindo-as e delas extraindo algo da importância de suas vidas.

Seu Manuel é agrocultor e também tapeceiro, daí ter se utilizado muito dos trens para ir para Bauru em busca de seu material de trabalho. Ia e voltava com os trens, muitos durante o dia. O mais gostoso, além da saudade e de ver em sua fala algo da importância que o modal ferroviário teve em todas nossas cidades, fonte de progresso e de real contato entre os povos, foi ver como seus olhos brilhavam ao retratar do povo e da querência popular de todos, o carinho pelo trem. Talvez naquele momento, sentido menos, pois tudo era ainda vivenciado, mas com o espaçamento do tempo, isso é demonstrado de forma muito evidente. Gente como seu Manoel não consegue entender como puderam dar cabo nos trens e dificultar assim a vida de todos. Ele nunca vai entender dos motivos que levaram na retirada dos trilhos e em seu lugar nada a preencher aquele espaço vazio.

Nossa conversa flui em cima disso e poderia se estender por muito mais tempo. Gente como ele nos faz ganhar o dia. Eu havia ganho o meu ali naquele momento, quando ainda não imaginando o que viria pela frente, me vejo com um senhor passando pelo lugar onde me encontrava e a partir daí, um envolvimento arrebatador. Hoje, domingo pela manhã, eu cá batucando estas linhas, pronto para descer pra feira dominical, certamente trocaria tudo o que tenho para fazer hoje pela continuidade daquela conversa na beirada de onde passou um dia a linha férrea em Cabrália. Queria voltar a prosear com seu Manuel e irmos prolongando a conversa, onde certamente me contaria histórias do arco da velha. Isso mesmo, sou movido por algo assim, muito simples e nada rebuscado, ou melhor, muito rebuscado e eivado de uma importância vital no conglomerado da vida, os relatos humanos, a vivência de cada um. Não tenho nenhum contato dele, nem um mero telefone, mas sei que, lá no lugar onde o encontrei deve ser conhecido e não se surpreendam se, qualquer dia desses, saia atrás de reencontrá-lo e assim poder dar continuidade no que iniciei e me encantei. será que o Régis toparia embarcar junto comigo nessa continuidade do que começamos dias atrás, quando estávamos diante do que restou de memória ferroviária nas cidades por onde o trem passou?

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