CARTAS DE BAURU – HISTÓRIAS DA LABUTA DIÁRIA DE GENTE SE DESDOBRANDO PRA SOBREVIVER
1 – Ela é uma batalhadora, dessas acordando todo dia – como tantos pela aí -, 5h30 da manhã já em pé, noite sempre mal dormida, mas ciente de que se perder a condução para o serviço, terá que se virar e por estes dias, não tem pro moto táxi, muito menos para o uber. Acorda mais cedo pra preparar a marmita. Lá diante do serviço tem um cara vendendo marmitex por R$ 16, mas não tem como pagar isso, pois na soma dos dias daria mais do que ganha no mês. Me diz, assim mesmo estar feliz, pois com o que recebeu mês passado, pagou tudo e mesmo dura o mês inteiro está com a consciência tranquila, sem dever pros outros. Ela e tantos outros ainda seguem religiosamente este preceito de que dever é feio, preferindo pagar até do que comer. Me disse que assim dorme melhor, mesmo pouco, sempre levantando querendo mais cama.2 – Entro na padaria de bairro – não a aqui perto de casa -, pra comprar pão – ah, como gosto de pão! Vejo um grandão, caseirão tipo família, dando pra todos comerem. O danado é lindo, balofo, macio só de colocar os olhos, daí já me imagino fatiando-o todo e recheando com manteiga. Não resisto, compro um. Me espanto com o preço, R$ 12. Digo que lá na região onde moro e nos supermercados famosos da cidade, um deste tamanho custa, no mínimo o dobro. Ela sorri e me diz algo bem simples: “Eu sei disso, aprendi que a gente tem que vender o mais gostoso também num preço onde o que tem menos dinheiro possa pagar. Eu ganho na quantidade vendida. O importante é o senhor, que nunca vi aqui, puxando conversa comigo só pra elogiar meu pão. Ganhei o dia”. Quem ganhou fui eu.
3 – Numa reunião ontem à noite eu conheci ele e algo de sua história. Um espigão, cara magro e grandão, adora fazer gravações pelo Tik Tok, onde se mostra por inteiro, na sua simplicidade e me diz, faz sucesso. Tento entender e lhe digo, talvez tudo aconteça exatamente por causa disso, dele ser natural, sem disfarces. Mostra o seu mundo, a sua simplicidade e isso para muitos é algo meio sobrenatural. O danado rala muito, de sol a sol, sai cedo e chega tarde, moído ao final do expediente, mas encontra tempo para inventar, ao menos uma história diária, dessas que vem bem lá de dentro de sua fértil imaginação, expondo-a para o mundo. Se mostra feliz quando obtém curtições aos montões e é isso que lhe move para continuar produzindo cinema, sim, foi isso que disse pra ele, você é um cineasta de si mesmo. Ele riu e creio eu, o incentivei ainda mais a não parar de fazer o que vem já fazendo faz tempo.
4 – Leio num post do artista do traço, o professor jauense Jozz Zugliani, sua alegria ao ter descoberto no aeroporto de Guarulhos, uma lanchonete escondida de tudo, no porão do porão, com preços mais convidativos e nada abusivos, indicação dos funcionários do lugar, os que dão o seu jeito de driblar os altos preços das lanchonetes caras de aeroportos e estradas brasileiras. O que Jozz fez e divulga é o que faço nas viagens. Diante de um posto de combustível, com o preço do salgado chegando já em R$ 20 a unidade, nada como adentrar a cidade do lado de foram em busca de uma lanchonete, onde com certeza, os preços devem ainda variar, como aqui nos bairros, entre R$ 6,50 a R$ 8,00 a unidade. Se até no chique aeroporto de Guarulhos tem uma saída pela tangente, imagine em tudo o mais. Vasculhar é preciso, até para sair do lugar comum e dos preços fora da realidade do que vai pelos nossos bolsos.
5 – Adoro escrever sempre algo da Ilda, a resistente pequena comerciante, ainda atuando como banca de revistas, defronte o Aeroclube de Bauru. A região ganha ares de Zona Sul, cada vez mais “sofisticada” (sic) e ela, cada vez mais simples. Adentrar sua banca é dar uma volta ao tempo, assim como deve ser o mesmo com todos os insistindo em manter bancas de revistas pelas ruas de cidades. Suas histórias me comovem, pois vão tendo que se reiventar, criando outras possibilidades, cada qual juntando caraminguás, que no frigir dos avos, será o ganha pão de suas vidas. Ela mantém uma lateral da banca com pequenos produtos, desde pães da Bauducco, que diz, o vendedor, seu amigo, faz questão de lhe vender produtos, mesmo em pequena quantidade. Enfim, são amigos e assim, o caminhão de entrega para ali só para entregar meia caixa com pães. Vi desde detergente, cola e não mais o amendoim, este feito por ela mesma. “Minhas dores nas costas, tem me tirado da frente do fogão”, me explica. Ontem, quase 11h da manhã, tinha vendido somente um jornal até aquela hora e estava condoída pela ausência de um frequentador, leitor de muitas publicações, motivado pela descoberta de uma complicada doença. “Ele da última vez veio aqui de táxi e achei algo diferente”, me conta. Passo horas ouvindo suas histórias recarregantes de vida.
6 – A minha amiga Amanda Helena, escritora das quebradas - morando nela -, me liga para comparecer numa rifa de alguns de seus livros, tudo para poder efetivar sua mudança do Godoy para a Pousada da Esperança, ela e seus 16 gatos. Bacharel em Direito, faz faxina para sobreviver e possui um dos textos mais ácidos, sinceros e originais destas plagas. Sai de uma região mais próxima do centro, para as rebarbas da cidade e me conta do que vai encontrar pela frente, já na chegada, como novidade, o antigo locador da casa, deixando contas todas em aberto, ela ficará sem luz até juntar grana, ir lá nos altos da Getúlio, atravessando a cidade de ponta a ponta, pagar e assim, depois de tudo ter dado baixa, voltar a viver sem luz de vela. Ela mal ganha pra a comida dos gatos, mas não reclama e consegue algo inusitado, não trabalha pra fascista. Mesmo precisando, quando surge algo novo, vasculha qual a deles e se descobrir traços e laços fascistóides cai fora. “Não tenho mais estomago para isso”, me diz.
7 – Não tenho palavras para descrever o que sinto pelo Fernando Vinícius de Lima, uma pessoa que já tentou fazer de tudo para ir tocando a vida pra frente. Tenho uma lembrança dele e de seu então parceiro, o Renato – quase 20 anos passados -, tapeceiros de mão cheia, quando restauraram todos os bancos de um dos carros férreos do projeto Maria Fumaça. Naquele oportunidade, fizemos solicitação para muitos endinheirados empresários, mas foram eles, pequenos e com oficina, numa velha casa de madeira, no coração da vila Falcão, quem nos atenderam. Como esquecer do que fizeram? Hoje, vida já tendo rodado mais uma infinidade de quilômetros adiante, ele tenta tocar o barco adiante, morando muito mal em Val de Palmas. Dilacera ver amigos numa dificuldade sem perspectivas e diante da realidade, cada qual faz um pouco. Dias atrás, diante de mais alguns embaraços, o vejo postar uma foto de seu cão, este todo sorridente e ao seu lado, legenda de doer por dentro e por fora: “Você me impede de acabar com tudo”. A vida está dilaceradamente difícil para a imensa maioria do povo brasileiro.
OBS FINAL: Escrevo este texto depois de tirar da estante do Mafuazinho (meu novo recanto, menor e com tudo mais comprimido) um livrinho delicioso do jornalista Ricardo Kotscho, o “Cartas do Brasil – Crônicas do ano em que o povo despejou o presidente” (editora Globo SP, 1992, 184 págs). Ele encontra consolo em “figuras supostamente menores”, personagens não muito habituais nos jornais de hoje. Vai no popular, no que vê por aí e destes relatos, histórias do dia a dia, uma mais deliciosa que a outra, consegue se recarregar para continuar tocando seu barco. Eu cá do meu canto, estaria muito mais destroçado se não fizesse o mesmo. Enfim, estes, os ditos “menores”, as histórias garimpadas aqui e ali, essas as mais importantes para não adoecer de vez. Isso tudo me mantém vivo. Kotscho só me reafirmou isso.
OUTRA OBS.: As ilustrações são todas de Mariana Massarani, a melhor ilustradora de livros infantis deste país, um traço inalcançável de tão belo.
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