segunda-feira, 8 de julho de 2024

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ENTRANHAS

EU SÓ CONHEÇO O QUE REALMENTE SE PASSA DO OUTRO LADO DESTA CIDADE POR CAUSA DE GENTE COMO AMANDA HELENA, ESCREVINHADORA DAS QUEBRADAS DO MUNDARÉU

Confesso, tenho poucas conversações com o lado periférico da cidade de Bauru. Falha minha e de tantos outros, agentes sociais, mas sem este umbilical contato, algo pelo qual, sem ele, nada feito, sem este elo de ligação latente e pulsante, as informações do outro lado chegam sempre truncadas e tendenciosas. Leio constantemente pelas matérias do JC, nosso único jornal impresso, sobre as ações da Polícia Militar, hoje o tal do BAEP junto das camadas mais populares da cidade. Tenho lido sempre algo como uma versão única, quando chegam e são surpreendidos, daí reagem e assim são produzidas as matérias, não só as do JC, mas da imensa maioria das publicações brasileiras. Mostram somente um dos lados da questão, a versão do Boletim de Ocorrência e prestada pelos policiais envolvidos nas ações. Preocupante isso, pois latente a existência de algo mais, ou seja, a realidade do que de fato acontece pode ser outra e as próprias matérias do jornal estão a demonstrar isso. Ou seja, basta puxar ou seguir pelo fio da meada.

Escrevo isso e vou até meu contato com esse elo periférico, mantido através da renovada conversação com AMANDA HELENA, poetisa, escritora, licenciada em Direito, trabalhando para sobreviver como faxineira e até bem pouco tempo morando na nas barrancas da avenida Nações Norte, agora enfronhada no seio da vila São Paulo e adjacências. Sua rotina hoje se dá entre sua dezena de gatos, o trabalho, o cuidar dos filhos e a sobrevivência, situada no imbróglio entre pagar as contas diárias, comida incluída e o aluguel, o transporte urbano. Tudo junto não dá, falta sempre muito. Ela além de vivenciar isso tudo, escreve e muito bem, destes assuntos do seu dia a dia. Seu linguajar é o de quem, mesmo podendo fazer de forma rebuscada, não o quer, pois sabe, deixará de fazê-lo com a linguagem coloquial das ruas. Isso tudo me faz lembrar Plinio Marcos, sua vivência e seus escritos. Tantos outros, mas ele é muito a cara do que vejo quando estou a falar com Amanda, conta algo de seus filhos, sua luta e ao ler seus escritos, a certificação de que, essa menina precisa explodir e assim como um dia fez Carolina Maria de Jesus, ganhar o mundo, ser reconhecida. Não vou ser eu quem vai contar o que passa lá nas entranhas da cidade, mas gente como Amanda, vivenciando na pele as agruras e tudo o mais.

Dela, em cada texto que me passa, após a longa conversa sobre essa nossa coleção de recortes das ações policiais na periferia bauruense, eis um bocadinho de seus últimos escritos, todos feitos na base do “sangue, suor e lágrimas”. Neste a seguir, sem título, só para sentirem do que escrevo: “Você percebe que está perdido, quando a vida lhe esmurra e você perde a capacidade do pranto. Você o deseja como uma cachoeira em meio à mata densa. Você está denso, parte concreto, parte motor enferrujado. Então pergunta em frente ao espelho, se o psicotrópico lhe assaltou as glândulas lacrimais.  Seus olhos são Severinos, severos, torna te um pequeno olho que tudo vê, inerte, pintado num livro. Espera ver algo que nunca vê e não sabe se o choro roubado te é benção, maldição ou efeito colateral. Talvez o nó no peito que amarra a torneira dos fortes que choram. E anda pelas ruas em meio à multidão, anúncios de eterna juventude e desgraçados de calçada e desgraçados do câmbio e desgraçados com doenças do excesso de comida, quando lhe perguntam se tudo vai bem, afirma que sim, desgraçadamente cumpridor de protocolos”.

Tudo nela é um soco no estomago de quem vive o lado de cá, sem dar a devida atenção para o lado de lá, o que de fato está ocorrendo nas entranhas, nas quebradas, beiradas e seio periférico. Publico só mais um texto dela antes de continuar nossa pesquisa, que deve em breve render um outro textão, este cutucando algo mais perigoso, daí tudo feito com mais cuidado, pois sabido que, “quem tem, tem medo”. Eu tenho, ela mais ainda, o que não a impede de enxergar e querer colocar no papel bocadinho do que se passa, de fato e de direito bem ao lado de onde vive.

“Anatomia de um Vagabundo

Zé era Zé Clt, Morava num cubículo ap, fiarada, hora de rezá, cumê e muié. Zé ralava, estourava cartão quando o arroz faltava, Zé era também Serasa / Spc. 

Zé perdeu emprego, continuava Zé, mas com nome restrito, do aluguel caro não dava conta, na imobiliária Zé não era nome limpo, foi caçar morada no "onde dé"

Deu direto num bairro de quebrada, longe do centro, longe das empresas, casinha direto com proprietário, aluguel pequeno, grandes rachaduras

Zé precisava achar outra lida, fundo de garantia, não garantia metade da vida. A muié de Zé que sofria de episódios de hipoglicemia, na manhã dava o que tinha para as crias.

Muié de Zé antes de tudo era mãe.

Se Zé caísse de fome na rua, ele se viraria. Internet é luxo quando a coisa tá braba, Zé não mandava currículo pela internet, porque ter internet não dava. Vai procurar emprego Zé,  se vira, tú não é Mané! O currículo impresso era 20 centavos, ou Zé imprimia ou pegava um ônibus pra civilização, tão longe tudo tava. Zé teimoso, rumou rua, estrada e refluxo de fome pra sobrar dinheiro pra imprimir a papelada. Suado e com aparência indesejada, entregou vários papéis desses nas firmas. Firmou joelho e retornou com seu cheiro de suvaco pra sua distante vila.

Foi abordado pela polícia "tem passagem? Tá indo pra onde? Trabalha? Não senhor, respondeu já quase sem lembrar que tinha um nome. Encosta na viatura vagabundo! Mora lá naquela maloca? Naquele fim de mundo? Boa coisa não é.

Zé não tinha um currículo pra entregar pro PM e mostrar o proletário que era Zé. O dia que não tinha centavo, nem pro currículo nem pra lotação, passava tempo com os filhos na praça Quando numa feita ouviu umas mães de crianças comentarem, "coitada daquela muié" , um homem que vagabunda na praça sem fazer um quarqué”.

Amanda precisa ser descoberta, pois o sendo vai escrevinhar mais e mais. Sei que, tudo o que flui dentro de sua cachola é muito mais interessante de tudo o que escrevo. Ela sim, precisa ser descoberta, pois tem muito a nos contar. Eu tenho o maior orgulho dela me confidenciar algo de como se dá seus escritos, sua vida, suas angústias e sonhos. Faço das tripas coração, tentando dar meu jeito de repassar seus escritos adiante, pois um dia chegará, como o da escritora do “Quarto de Despejo” em mãos que a levarão para outro mundo. Não que ela queira sair do seu, mas poderá, com melhores condições nos relatar mais e mais este mundo tão pouco conhecido dos que, como eu, pensam conhecer o outro lado desta cidade e deste mundo.

Sua amiga, a também escritora, Angela Zanirato, ela de Paraguaçu Paulista, escreve da amiga: "Que matéria linda , Henrique! Amanda tem um talento incrível, tem uma escrita fora da curva. Mas ela mesma se boicota, e sabe disso. Parou de publicar seus escritos por aqui, não se interessa por projetos literários, não quer ser conhecida. Faz parte da mulher libertária que é. Não quer vínculos com nada do capitalismo . É uma eterna anarquista. Quem perde somos nós, a escrita dela é imensa!".

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