MEMÓRIA ORAL (124)
DAIANE E A VIDA INTEIRA REVIVIDA NAS FOTOS SOB O SOFÁ*
* Esse texto tem a pretensão de ser um mero libelo pela facilitação no entendimento de que todos somos mesmo mais do iguais, até nas diferenças. Nada mais que isso.
Bauru viveu momentos tensos quando meses atrás um travesti foi espancado por motivo torpe e jogado num matagal. Logo a seguir um foi morto numa praça central da cidade e na sequência outro com o mesmo grau de violência. Casos semelhantes se repetem Brasil afora, demonstrando que algo não anda lá muito encaixado na cabeça das pessoas quando se trata de estabelecer uma convivência pacífica com os desiguais. “Que seria do mundo se todos fossem e pensassem e agissem iguais”, se pergunta. Coisa boa é que não ocorreria. Em tudo nessa vida existem os bons e os maus exemplos e a prostituição, com adágio popular repetido desde que o mundo é mundo, “é a mais antiga profissão do mundo”. Sendo profissão ou não, isso é para outro escrito, mas o fato é que muitos dos tais travestis vivem uma vida dentro da dita normalidade (existiria isso, afinal?), tranquila e com amplo apoio dos seus.
Conto uma história de um deles, um que começou cedo nessa vida, aos 13 anos e hoje, aos 35, tem uma situação estabilizada, sem sobressaltos financeiros e como diz, fazendo o que gosta. Suas recordações todas estão expostas num mundo de fotografias abertas sobre o sofá de sua sala. Trata-se de Daiane Del Prado (também conhecida em alguns momentos como Shantala ou Moana), paulistana e há pouco mais de seis anos residente em Bauru. Veio de Botucatu, onde morou muito tempo com a avó e lá tentou um único emprego sem usar saias, o de ajudante de cozinha num restaurante. Estudou até a 6º série e vivendo entre a capital e a vizinha cidade, sua opção de vida já estava feita, queria viver da venda do seu corpo nas ruas. “Tentei tirá-la dessa vida, mas não houve jeito, sua decisão estava tomada. Compreendi desde o começo e o que nunca deixei foi que ela fosse explorada”, conta a mãe, Aparecida da Silva Peres, que acompanhou toda a entrevista.
Bonita, corpulenta, o caminho trilhado foi o do sucesso, pois já aos 22 anos, ano de 1999, estava na Itália. “Entrei como turista, três meses e fiquei um ano. Já estava feita, linda e comecei a ganhar bastante dinheiro. Sempre fui decidida no que queria e economizei muito para chegar lá. Lá não tinha onde guardar dinheiro, saia com ele todo junto ao corpo. Quando voltei comprei um apartamento em São Paulo, casa em Botucatu, isso para minha família e um Fiat cupê importado para mim. Não fiquei seis meses no Brasil e voltei para a Itália, ficando mais oito meses. Hoje já perdi a conta de quantas vezes fiquei nesse vai e vem. Voltava só para ver a família e nunca para fazer programa por aqui. Só tive a ideia de conhecer outras cidades, no caso Bauru, quando a situação na Europa começou a ficar ruim”, relata Daiane, que num dia muito remoto foi batizado de Fábio, nome utilizado até hoje somente pela avó.
Em Bauru, gostou do que viu e decidiu deixar de lado a ideia de não “trabalhar” no Brasil. “Vinha todo dia de Botucatu para cá de carro, posava em casa. Meu marido me acompanhava e ficava me aguardando. Não se espante, pois tive três maridos, o primeiro sete anos, o segundo oito e o terceiro três. Perdi boas oportunidades por causa do amor por eles. Um europeu queria me operar, acertar meus documentos, mas joguei tudo para o alto. Preferi o marido. Pensava mesmo em me fixar num algum lugar que continuasse me dando dinheiro. Bauru me recebeu muito bem. Montei a minha casa por aqui e ajudo muitas delas, quando tive a ideia de abrigar as que eram muito exploradas nas ruas. Não tinham onde ficar e pagavam uma fortuna em hotéis”, começa contando sua experiência bauruense.
Hoje Daiane mantém uma casa onde muitas residem e lutam juntas contra a discriminação das ruas. “Eu aluguei a casa e elas dividem o aluguel, ficando livres com a alimentação, que podem fazer também ali. Defendo elas, sou uma espécie de advogada de todas e tudo o que eu posso faço por elas. Nessa casa não se é permitido levar clientes, só amigas e acabo ensinando elas todas com algumas regras básicas de sobrevivência das ruas. Desde o trato com o cliente, os métodos de prevenção, ou seja um pouco do que aprendi eu passo adiante”, conta. A tal casa já comportou mais de vinte e hoje oscila de dez a quinze. “Elas vão e vem, tem dia que não tem nenhuma e noutros tem quinze. Bauru não tinha o hábito de prostituição diurna e hoje junto ao Motel Floresta tem de tudo, desde mulheres a travestis. Eu fui pioneira lá e hoje virou ponto tradicional”, continua. A mãe, Cida, ouve tudo e de vez em quando emite sua opinião: “Eu vim para Bauru cuidar de minha filha. Se não vou mudar ela, vim olhar de perto e proteger”.
Quando lhe pergunto se isso tudo não cansa, sua reposta é rápida. “Adoro essa vida agitada, marcante para mim. Sempre tive muita coragem, como das primeiras vezes que fui para a Europa sem conhecer nada, muito menos a língua. Não te contei, mas casei lá com uma italiana que precisava de dinheiro, isso em 2007. Eu precisava do documento e ela de grana. Hoje sou muito amiga de toda sua família, eles me adoram. A Europa eu conheço quase inteira, trabalhei nos mais famosos lugares e no mês de setembro próximo volto novamente, dessa vez sozinha e mais por costume, por necessidade de estar lá novamente”, continua seu relato. Aqui a mãe entra no assunto e emite novamente sua opinião: “Deus dá o livre arbítrio para todos. Por ela ser travesti não vai deixar nunca de ser minha filha e dessa forma me dou bem com todos eles. Lógico que queria que ele fosse um doutor, mas foi uma escolha e não viro as costas para ela”.
Setembro está chegando, devendo permanecer um ano inteiro por lá e a mãe ficará por aqui cuidando de tudo. Muitas também já foram para lá seguindo seus passos e orientações. “Não me peçam para deixar essa vida. Gosto demais do que faço e não prejudico ninguém. Sempre fui exigente comigo mesma, muito limpa, higiênica, por isso passei batida por essas doenças todas. Cuido demais do meu corpo, quero sempre estar inda, cheirosa e atraente para meus clientes e amigos. Te confesso que a única burrada que cometi nesses anos todos foi por causa de um ex marido ter me envolvido com drogas. Nesse período esqueci da família e fiquei num mundinho fechado, eu, o cara e as drogas. Dei um breque quando descobri a Itália, o luxo e percebi que perderia tudo se continuasse maluca. Me controlei na marra”, conta essa passagem sendo observada de perto por duas amigas que vieram lhe fazer uma breve visita, Naomi e Mary Jae, ambas sem envolvimento com a prostituição e sim com o show business.
Ela continuaria falando muito, contando passagens, relembrando a história de amigas, buscando nas fotos a lembrança de um passado não tão remoto. Peço que me diga como entende isso das pessoas perseguirem os travestis e os homossexuais pelas ruas. “Em tudo, os bons pagam pelos maus. Nesse meu mundo existe de tudo, os ruins do lado de cá e do lado de lá. Eu não faço mal a ninguém, vivo minha vida, de forma intensa. Evito uma briga, mas já tive que entrar em algumas, inevitáveis as minhas. Temos que nos defender das maldades desse mundo, mas até nisso tive sorte, pois tenho encontrado muita gente a me tratar muito bem. Sou paparicada e não tenho do que reclamar”, diz sobre o assunto. Daiane reflete bem essa espécie de vitrine exposta em nossas ruas e que só é visitada quando dois lados estão predispostos a fazê-lo e dessa forma, com os dois querendo, não existe como manter posicionamento contrário. Ela não caça clientes. O que ocorre é exatamente o contrário e compreender isso é entender uma das muitas facetas do que ocorre em nossas cidades desde os mais remotos tempos. E assim sendo, não se justificase o uso de nenhum tipo de violência com semelhantes nessas condições. Todos estamos no mundo para viver e deixar viver, sendo Daiane somente mais um personagem nesse álbum de figurinhas, no caso dela, com fotos e mais fotos.