sábado, 4 de janeiro de 2014

MEMÓRIA ORAL (153)


TONINHO, O COLETOR DE LAVAGEM DO CENTRO VELHO DE BAURU
O velho centro de Bauru e suas ruas de comércio possuem tipos bem característicos, pitorescos e até exóticos. Cada cidade possui seus personagens mais do que próprios. Em alguns casos impossível não reparar na excentricidade de alguns nas inevitáveis trombadas do dia a dia. ANTONIO FRANCISCO DE MELLO, o popular TONINHO AROEIRA, 64 anos de idade e há mais de vinte circulando pelas ruas centrais de Bauru é um desses. Estatura mediana, corpo franzino, fortalecido por décadas de exercício diário e pele bronzeada pela continuidade da exposição ao sol é mais do que famoso, primeiro por ter exercido a profissão de técnico de Judô na Associação Luso Brasileira por quase três décadas, quando todos que lá passaram guardam dele boas recordações. Depois, impossível não reparar no que começou a fazer pouco antes da aposentadoria, ocorrida no ano de 2000.

A aposentaria só acelerou o processo de colocar em prática o gosto por incrementar o que já fazia pelos lados de uma chácara adquirida nas imediações do Cemitério Jardim do Ypê, pelos lados do Recanto Águas Virtuosas. Lá denominou a chacrinha como sendo a Estância Aroeira, onde começou criando suínos, depois passou a também fazê-lo com caprinos, hoje atuando também com reciclagem de caixas de papelão e latas de alumínio. Daí, tudo o que lá ocorre tem uma relação umbilical com o centro da cidade, pois desde então bate cartão junto aos comerciantes em busca de lavagem, a sobra de alimentos dos restaurantes, servindo de alimento para suas criações e nas lojas em busca do papel reciclado. “Imagina fazendo isso há quase trinta anos, todos os dias. Conheço todo mundo aqui pelo centro. As caixas eu pego nas lojas, as boas eu reciclo e revendo para as mudanças residenciais e as que não servem para essa finalidade, vão direto para a reciclagem”, diz sobre suas atividades.

O que mais chama a atenção de todos à sua volta é sem sombras de dúvidas a questão da lavagem. Com um desgastado Ford C10, modelo Pantaneiro, na cor marrom, que o acompanha há mais de dez anos, a carroceria deste é quase toda tomada por doze tambores azuis, desses reforçadas, onde o próprio Toninho, munido somente de sua inseparável luva, fica num sobe e desce buscando a lavagem dos restaurantes e depositando nos tambores. Observado por muitos nessa rotina, nem isso o incomoda. “Começo minhas atividades aqui no centro por volta das 14h e só para depois das 18h, todo santo dia, inclusive aos domingos. O Paulo do X Burguer ali da praça Rui Barbosa é o mais antigo a me ceder lavagem. Paro o caminhãozinho todo dia ali em frente. Depois recolho também óleo vegetal, inclusive aos domingos na Estância Grill da rua Treze de Maio e outros lugares. Loto a carroceria e só no final do dia é que coleto os papelões, quando estaciono ali na rua Azarias Leite e tenho a exclusividade disso nas quadras, dali até a estação. Com ela cheia sigo para o Aroeira, onde descarrego tudo”, continua contando sua história.

Muitos dos que o conhecem chegam a dizer: “Toninho, você não precisa disso. Você mesmo ficar aí pegando lavagem, tão aviltante”. Ele ri disso tudo, pois não enxerga nada de aviltante em nada do que faz. Uma atitude como outra qualquer e ainda por cima, concilia fazend o que gosta, a sua maior distração na vida, além de estar com a família é  cuidar das coisas da estância. “O serviço que muitos possuem vergonha em fazer eu faço e numa boa. Tem mais, quando um comerciante precisa tirar o lixo das suas lojas, muitas vezes me chamam e faço sem maiores problemas o rescaldo de tudo. Vivo disso, reciclo tudo o que me serve e ganho com isso. Tem um caseiro que me auxilia, ele mora lá na estância com a família. Somos nós que fazemos tudo. Aqui na Azarias, o Zé do Kuekão e o Paulinho, do Beco do Armarinho me dão a maior força”, conta sem parar de fazer seu serviço, no leva e traz que lota a traseira do seu meio de transporte.

Os lugares onde estaciona sua F10 são escolhidos. Na Azarias Leite,quadra 4, entre o Calçadão da Batista e a avenida Rodrigues Alves, o local preferido, quando existe vaga disponível é defronte a banca de brinquedos da Natália, ela também ali no mesmo local há mais de vinte anos. “Ele é meu velho conhecido. Chega e já larga tudo aberto, até com a chave no contato. Um acaba olhando e cuidando da atividade do outro. Todo dia ele para aqui para conversar, pergunta se está tudo bem, impossível não ficar amigo dele. Eu vigio para ele e não deixo ninguém suspeito se aproximar”, conta Natália, sentada numa cadeira junto de sua banca ali na calçada. Toninho continua no entra e sai das lojas. Nisso passa pela mesmo calçada o Zé do Kuekão, lojista antigo e cumprimentam-se cordialmente, como se fazem todos os dias. Percebe-se que, para os que se reencontram todos os dias, o cumprimento é num simples gesto, palavras carinhosas de quem se trombam repetidas vezes. E Toninho segue revendo a cada entrada nas lojas, pessoas queridas, que já amontoam o que ele passa coletar. Quem se predispõe a acompanhar um bocadinho que seja da rotina desse valente batalhador percebe isso logo nos primeiros momentos.

Para quem observa atentamente os movimentos do Toninho, percebe-o mancando um pouco da perna direita. “É o meu joelho. Basta o tempo querer mudar, dói mais e como paro pouco, manco mais. Isso é um resquício dos meus tempos de judô. Não guardo somente as alegrias, o amor pelo esporte e pelos diários exercícios, mas tem disso também me acompanhando”, diz. Nesse dia, começo de ano, havia um algo mais a ser notado. Impossível de não ser visto fixado atrás de sua orelha um galho de alecrim. “Esse é para trazer bons fluidos no começo do ano. Com ele nada de ruim acaba se aproximando de mim”, diz isso e já sai, dessa vez munido de uma carriola, para coletar com mais facilidade os papelões. Desmonta caixa por caixa antes de ir ajeitando tudo na carroceria do caminhão.

A trabalheira toda é compensada com a revenda de tudo o que faz. “Só no final do ano passado devo ter revendido aproximadamente umas 150 leitoas. Cabrito foi menos, mas a procura também é muito grande. O que tenho sai. Essa é a época do ano onde a limpeza é quase geral. E depois de tanto tempo, podia até parar, descansar, ir fazer outra coisa, passear mais, me divertir, mas eu tenho algo dentro de mim a me dizer que não posso parar. Com certeza só tenho mesmo, que ficaria doente. E desse jeito, continuo. Vou seguir por aqui até quando puder, até deixarem e enquanto tiver forças para continuar. Parar eu não quero e os próprios comerciantes me incentivam a não parar”, conclui.
Antes da despedida peço a ele alguma história interessante desses anos todos. Toninho pensa um pouco e solta uma. “Achei um sacão de roupa no meio das coisas que já estavam na carroceria. Vi que não eram coisas de lixo e fiquei intrigado. Revirando tudo achei um papel de onde era, do Torra Torra, meu cliente. Fui lá e descobrimos o engano. Não era lixo. Devolvi tudo e fiquei de bem comigo mesmo”. Lembra de outra, história bem parecida: “No meio de uma das muitas caixas coletadas, um monte de remédios, todos dentro do prazo de validade. Não sei como vieram para ali, mas sabia de quem eram. Era da Drogasil Catedral e quando fomos conferir, percebemos que havia ali mais de mil reais. Tudo foi devolvido. De que me vale eu ficar com coisas que não são minhas. Prefiro ficar de bem comigo mesmo”. Esse é o jeito Toninho de tocar sua vida, fazendo o que faz e de um jeito só seu.

4 comentários:

Anônimo disse...

Belíssima história Henrique Perazzi de Aquino,amo Bauru e mato saudades lendo notícias como essa!um maravilhoso 2014 a vc e família.
Ana Karina - bailarina

Anônimo disse...

Homem trabalhador sem dúvida,mas outro dia pedi uma caixa para ele e ele não me deu ,uma só, tinha um monte lá,mas fazer o que né,cada um sabe onde o calo aperta.
Denilse Souza

DUILIO DUKA DE SOUZA ZANNI disse...

Meu querido amigo/irmão Henrique.

A cada dia que passa você se faz maior e melhor, com suas lindas e emocionantes crônicas denominadas "memória oral", escrevendo ou resgatando a História dos personagens praticamente anônimos da nossa querida Bauru. Anônimos ou invisíveis na sociedade. Mas sei, VALIOSÍSSIMOS para você, para mim, para alguns poucos mais.

Conheço o Toninho Aroeira desde a época em que eu trabalhava numa Banca de Jornal e Revistas que ficava enconstada na parede do Hotel Itamaraty (hoje abandonado)ali na esquina da Rodrigues com a Monsenhor Claro. Todos os dias ele passava por ali e já era um figura pela sua beleza estética e moral!
Parabéns meu amigo por mais essa pérola, de número 153.
Que venham outras e outras tão gostosas de apreciar e guardar na memória!
Abraços do duka.
duiliodukadesouza@gmail.com

Anônimo disse...

Grande Henrique,
Bom dia:
Parabéns por mais um texto.
Espetacular: como todos os anteriores e, querendo Deus, os posteriores.

E o livro?

Já está mais que na hora....

A comunidade acadêmica e o público em geral estão reclamando de você e sua demora .........

Do amigo de sempre,

Professor Toka