sábado, 26 de julho de 2014
MEMÓRIA ORAL (164)
UMA CASA RECHEADA DE ORIGINAIS TESOUROS
É tão gostoso ir desvendando possibilidades mil em lugares nunca dante imaginados. Existem uns até hoje apregoando que nos subúrbios viceja pouca cultura. Ledo engano, desvendando as entranhas suburbanas brasileiras, pipocam por todo lugar exemplos vivos de algo pulsante e latente. Nos recantos mais afastados do seu centro nevrálgico, novas descobertas são feitas a cada nova caminhada. Devassar isso é o que torna a vida das pessoas esse eterno descobrir e ir a cada virada de esquina constatando um eterno porvir. Segredos ocultos, escondidos dentro de casas todas muito parecidas, cenário de sofrimento humano, rotina de muito trabalho e pouco lazer. Fui ao bairro Tangarás, mais ou menos uns 10 km do centro da cidade e numa de suas ruas, essa recém asfaltada, algo diferente já é notado pintado nas paredes da área frontal da residência com a inscrição “Siga o caminho das estrelas”, junto de quadros e penduricalhos outros suspensos nas paredes. Isso já é o indicador de que de algo estranho e diferente ocorre no seu interior.
Nesse com certeza existe. A garagem em si é um prenúncio mais certeiro disso. Dentro de um rodado veículo estacionado na garagem algo lotando o seu interior: livros e mais livros. O proprietário da mesma é Francisco Carlos Jaloto, o popular Carioca, livreiro dominical da popular Feira do Rolo e durante o restante da semana em seu domicílio, dando prosseguimento ao visualizado nas ruas. Vive do negócio de livros, CDs, alguma antiguidade e outras preciosidades garimpadas e postas a venda. Carioca vive do que arrebanha com a venda disso tudo. Sua casa é a extensão de tudo, abarrotada em todos seus cômodos, desde sala, banheiro e o quarto onde dorme. Vive no meio disso e pelo presenciado, vive feliz, ele junto do seu tesouro particular.
Poucos vão à sua casa. Pede que quando escrever dele e de sua casa, não informar o endereço. Ali ele junta tudo o que vai amealhando. Caixas e mais caixas com um conteúdo que só ele sabe localizar quando necessário. “Na feira de domingo eu revezo isso tudo um pouco de cada vez. Tem semanas, após levar o mesmo acervo repetidas vezes, troco tudo e trago tudo renovado. E depois quando me perguntam de qualquer livro que já tenham visto, eu sei onde cada um deles está localizado aqui dentro de casa”, diz. É isso mesmo, ele sabe muito bem o paradeiro de tudo ali dentro. Ali uma santa bagunça.
Pergunto a ele após mostrar os LPs raros e livros antigos, que deve ganhar muito vendendo aquilo tudo pela internet. Sua resposta: “Se tivesse internet e fizesse uso desses sites de venda, tipo o Mercado Livre eu estaria rico. Não tenho nada disso, nem sei acessar, vendo só na feira, depois para conhecidos e gente de fora, alguns que ligam e acabam vindo aqui”. Disso tudo entendo que o Carioca vive com pouco, ou seja, o suficiente para continuar fazendo o que gosta. No dia em que lá estive acompanhado com o filho, havia nos dito que acabara de comprar um grande lote de livros e estava no processo de limpeza, catalogação e até de separação para futura leitura. Sim, muitos dos que passam pelas suas mãos são lidos antes de serem vendidos.
Estive em sua casa por um simples motivo. Meu filho, Henrique Aquino, 20 anos, herdou de mim a paixão por livros e também por freqüentar o espaço desse inusitado livreiro da feira bauruense. Tomou conhecimento do acervo existente na casa dele e tanto ficou insistindo, que acabei levando-o para conhecer o lugar no meio de uma tarde da semana passada. Deixei-o lá e só volto horas depois. O faço quase três horas depois esei que nem tudo foi devidamente vasculhado. Um pequeno monte estava já separado, escolhido e pronto para ser arrematado. Dentre eles alguns do Elio Gaspari sobre a Ditadura Militar, teatro grego, Graciliano Ramos e um que meu filho estava em dúvida de levar e vejo os dois confabulando a respeito. “Esse é sobre a Guerra do Napoleão, escrito por um escritor norte-americano e pelo que li, com pouca vivência histórica dentro desse tema. Fico em dúvida de levar”, me diz o filho. Após ouvir tudo sobre o livro, meu filho não Le va o tal livro e Carioca decide ali que o preço desse estaria a partir de agora rebaixado.
Toda a conversa lá gira em torno desses temas. Observo sobre a pia caixas e mais caixas de livros, muitos LPs sem capa e em pé, tipo num escorredor. “Não se assuste. Tudo o que compro eu lavo e deixo escorrendo. Cuido de cada capa estragada, reparo tudo. Vivo disso e cuido muito bem do que levo para vender. Tenho o mesmo procedimento tanto para um LP que revenderei por meros dois reais, como para os que cobro 50 ou 100 reais”, diz. Com os livros o mesmo cuidado, pois o vejo borrifando um líquido parecido com perfume, mas depois me explica ser um protetor contra traça, percevejos e afins.
Tudo toma outro rumo quando me puxa pelo braço e me conduz para ver suas paredes, onde algumas preciosidades estão ali penduradas. Um quadro japonês pintado em pano, de autoria desconhecida, pôster do John Lennon, coleção de LP e caixinhas Box de Nelson Gonçalves, Altemar Dutra e Sinatra. “Tudo aqui está a venda, até minha coleção particular de alguém que gosto muito e poucos conhecem, a do Aumir Deodato. Tudo que acho dele eu compro. Veja esses discos promocionais do dia da inauguração do Morumbi, esse em formato de coração”, mostra e não para mais de falar. O acompanho por todos os cômodos, ora no quarto retirando algo do fundo de uma caixa, ora algo pendurado em sua parede ou o pequeno objeto pendurado em várias prateleiras espalhadas pela casa.
Essas estantes, todas forradas de pequenos bonecos, nelas tem de tudo um pouco. Desde pequenas coleções daqueles soldadinhos de chumbo, bonequinhos brindes do Mc Donald’s e afins. Tudo peça para colecionador, algumas bem antigas, outras mais recentes. Carioca cozinha no meio disso tudo e acabamos comendo uma farofa feita com “gordos ingredientes”, como nos diz, ou seja, de tudo um pouco. Tenta nos ensinar a receita, mas estávamos interessados é no que víamos, não no que comíamos. Gostamos da iguaria, mais ainda das intermináveis histórias que iam surgindo de cada nova peça que íamos trombando em cada novo passo.
Pairando no ar acima de tudo o som de um rádio ligado durante o dia todo, som baixo e com repertório escolhido a dedo. Só preciosidades. “Não ergo o som, pois preciso também estar atento ao som que vem das ruas. Aqui não é fácil, meu!”, explica. Para minha surpresa ganho alguns presentes. O livro “A sangue quente”, uma biografia do Vladimir Herzog, edição de bolso, papel jornal, anos 80 e um raro LP lançado pelo Pasquim, com gente com João Bosco, Aldir, Tom e Itamar Assumpção. O pôster no meio é obra do cartunista Mariano. Uma raridade que poderia lhe render uma boa grana, mas prefere me presentear, diz ter reservado para mim faz tempo, pois sabia que era do meu gosto. Oferece-nos um vinho, aberto ali na hora e consumido rapidamente, pouco antes das despedidas.
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2 comentários:
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Helena Aquino Belo texto irmão ..... Quem gosta de livro é isso ... de pai pra filho .....Já comprei vários livros do Carioca ..... preciso voltar lá na feira ...
há 8 horas · Editado · Descurtir · 1
Antonio Guerra Grande carioca, sempre visito ele na feira.Parabens Henrique Perazzi de Aquino pelos relatos.
há 8 horas · Descurtir · 1
LiMartins Martins Muito interessante! Parabéns pelo filho tbm! Raros rapazes hoje em dia que buscam o conhecimento e admiram a simplicidade de onde vem obras raras como estas do post!
há 7 horas · Descurtir · 1
Gostei muito do texto, e da homenagem ao Carioca, Henrique Perazzi de Aquino! Quem nunca passou pela banca dele na feira do rolo não sabe o que está perdendo! abraços!
Bruno Emmanuel Sanches
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