terça-feira, 20 de fevereiro de 2018
MEMÓRIA ORAL (221)
COMO UMA COMUNIDADE RURAL ITALIANA RESOLVE PARTE DE SEUS PROBLEMAS
Aqui no interior da Itália, de onde me encontro nesse momento, acabo de observar algo encantador das relações entre autoridades e uma comunidade rural. Estou na região da Romagna, a que compreende Ravenna e Forli-Cesana, mais Rimini, parte de Bologna até Imola, parte de Firenze até Marrade e por fim Montefetro. Mas precisamente me encontro na província de Ravenna, numa fração, pequena localidade denominada como Amonite. O que mais me encantou por aqui foi tomar conhecimento de ser essa região denominada como as “regiões vermelhas” da Itália, sob o domínio do atual partido político no Governo, o PD – Partido Democrático, também denominado como “centro-sinistra (esquerda)”. Cai sem querer num conhecido reduto esquerdista europeu.
Conviver por duas semanas disso tudo é mais que um privilégio, rara oportunidade de tomar conhecimento de como se dá o processo da vida rural num país do denominado Primeiro Mundo europeu. Eu, na qualidade de descendente de italianos, os Perazzi, cá estou, sem saber uma só palavra do idioma, mas conseguindo captar muito, isso devido à hospitalidade de um casal, Franco Mazzotti, pequeno fazendeiro nessa região, casado com a brasileira Rosangela Mazzotti, carioca como minha Ana Bia. Falamos em português o tempo todo e pergunto muito, instigo, questiono e assim vou tomando conhecimento de detalhes da vida dos pequenos centros urbanos italianos. Todos os pquenos agricultores daqui são denominados de fazendeiros, diferentemente do termo no Brasil, quando são assim chamados somente os com extensas áreas de terras. Aqui, outra diferença, todos esses plantam e estão à frente de suas propriedades, colocam a mão na massa.
Ontem, segunda-feira, vamos todos para algo que só acontece por aqui durante o Inverno. Somente às segundas, por alguns meses uma grande concentração de pessoas se dirige das 18h em diante num lugar específico e produzem algo dentro do que de melhor pode existir de encantamento nas atividades dos seres humanos, a real confirmação de que “a união faz a força”. Em sua imensa maioria pequenos agricultores, cada um com sua propriedade, heranças de longa data, demonstram como pode ser feito algo de concreto para viabilizar melhorias para a comunidade sem o auxílio do Estado.
O estado italiano provém o básico, mas eles não esperam que tudo venha dessa forma. “Nem tudo o que é preciso é conseguido. Corrupção existe em todo lugar e aqui não é diferente. O que fazemos é buscarmos juntos recursos para fazer o algo mais, aquilo que, com certeza, não seria provido com o dinheiro estatal”, explica Franco, meu anfitrião. Vamos todos para um evento, algo onde toda a comunidade se dirige nesses dias, um jantar arrecadatório patrocinado pelo Grupo Cangina, uma espécie de associação, onde aproximadamente 70 voluntários produzem um grande jantar, com o preço fixo de 12 euros por cabeça. Nele se bebe vinho da região, come-se carne de porco de vaca, macarrão como entrada e doces também produzidos por eles. O sistema é simples, cada família ou grupo ao chegar pega uma senha e num salão aquecido na entrada aguardam serem chamados para adentrarem ao banquete. E ao final jogam "tomboleta", uma espécie de bingo.
Quando entram tudo é servido de forma farta e repetem-se os pratos quantas vezes for suficiente para satisfazer a todos. Regras básicas são seguidas por todos e uma longa fila de espera ocorre, com todos esperando num salão ao som de música italiana. Ali todo tipo de reencontro é possível e as conversas giram basicamente sobre a produção de cada agricultor, a safra, as inteméries da natureza (nevou dias atrás) e também sobre o destino do dinheiro arrecadado, ou seja, onde vai ser empregado a arrecadação desta e de todos os próximos encontros semanais. Ninguém fura fila e quem não chega cedo, sabe que esperará um pouco mais, mas também conversará mais dentre tantos conhecidos. Na fisionomia de todos, algo de muita alegria e contentamento.
A casa sempre cheia, como nesta última segunda, quando a temperatura estava próxima dos dois graus positivos. Quando o grupo onde me encontrava saciou a fome e se retirou do local já eram mais de 22h30 e na sala de espera, ainda tinham umas 80 pessoas esperando serem atendidos. No de bingo, outro salão, mais de cem se divertiam. A música rolava solta e o burburinho alto, espantando o frio. Sai do local tentando entender o que vinha a ser de fato aquela reunião. Franco no caminho de volta para sua residência me explica e respondendo todas minhas perguntas. Diz que o grupo já fez de tudo um pouco na região, desde quadra esportiva para jovens, com vestuário e tudo, como projetos coletivos em locais escolhidos a dedo, além de cursos, palestras, oficinas, eventos e doações assistenciais. Escolhem algo que entendam necessite ser feito e tendo a certeza de que o Estado italiano não os proverá com sua realização, destinam tudo para essa finalidade.
Percebo eles todos terem plena consciência de que o Estado não consegue suprir tudo o que necessitam. Continuam cobrando e muito dele para tantas outras coisas, mas fazem um algo mais e com as próprias pernas e mãos. Foi lindo ver como conseguem, como se mostram unidos em seus objetivos, comprovando algo encantador, o das possibilidades da atuação coletiva. A região toda, por ser considerada a mais a esquerda italiana, mantém acesa a chama de um coletivismo gostoso de ser visto na sua praticidade. Nas paredes do lugar, as regras publicadas da comilança, onde arrecadam e em outros cartazes, todos os lugares onde o dinheiro é destinado. Conhecer uma experiência como essa, com uma engenharia tão rica de detalhes, com cada peça girando tão magistralmente bem, cada um com aquele sentimento de doação e de dever cumprido para com o lugar onde mora, para com seus semelhantes é algo calando fundo num forasteiro, tomando conhecimento de tudo somente ao chegar no local. Cai dentro de uma bela experiência humana e me senti na obrigação de passar a ideia assimilada adiante. É o que faço neste momento.
HPA - Amonnite, Itália, terça-feira, 20 de fevereiro de 2018.
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