terça-feira, 10 de maio de 2011

MEMÓRIA ORAL (104)

DOIS QUE PINTAM E UM QUE COMPRA
Uma pequena cidade, Reginópolis, interior paulista, com pouco mais de 7000 habitantes (2000 são presidiários, 2 grandes presídios na cidade) e ali dois verdadeiros artistas tentando a vida, junto a eles um que valoriza a arte, a reproduz pela casa toda, com as paredes de sua casa totalmente lotadas de telas e pinturas, principalmente dos dois. Escrevo de Marco Antonio Ribeiro, bancário aposentado, 70 anos, paulistano, que aportou por ali há uma década, quando vislumbrou problemas para os filhos, com medo de que eles pudessem ter envolvimentos com drogas na capital. “Vim passar férias, após os ver os filhos andando com maus elementos. Comprei casa aqui, investi, achei que era negócio. Quando cresceram passou o perigo, estava pronto para voltar, mas eles criaram vínculo com a cidade, um até casou e não querem mais morar na capital. Eu sinto a falta do lazer, não se tem o que fazer, mas fiz de minha casa um cantinho mais do que especial”, começa contando o aposentado.

Quem conhece sua casa, ou melhor, seu cantinho acaba parando para uma simples espiada ou até um pedido para fotografar e visitar o restante do imóvel, tal o colorido e alegria exposto nas paredes. Logo de cara uma pintura em toda a área de entrada, com o traço de um garotão que já fez fama na cidade, Cícero Rafael de Souza, ou só Cirção, como todos os conhecem e como assina seus trabalhos. Dono de um fino traço, vai refinando com o passar dos anos e expondo nos lugares mais inusitados, como na casa do seu Marco. Entrar na área é assunto para mais de hora, mas quando se é convidado para adentrar o restante do imóvel, a coisa ganha conotações de papo prolongado sem horário para termino. Na sala, telas e mais telas de outro artista reginopolense, Antonio Aparecido de Sá, ou só Sá, seu nome artístico. São muitos estilos misturados a enfeitar vários cômodos da casa.

Mas o que seria aquilo? Para responder essa pergunta precisei sentar para papear com o dono da casa. Foi gerente do Banco de Crédito Real de MG até aposentar e o gosto pela arte veio de família. “Sempre gostei de cristais e pinturas em quadros. Descobri o Sá quando quis colocar algo novo na minha parede, minha mulher também gostou e não parei mais. Sempre que tem algo novo ele aparece aqui para negociar, principalmente quando está mais desprevenido e nunca lhe neguei nada, sei das dificuldades que passa por aqui. Procuro valorizar. Com o Cirção, mais jovem, um que pinta paredes pela região toda, foi mais por gostar mesmo. Minha casa é isso que você está vendo. Meus familiares aprovam o que fiz e isso me faz feliz”, mostra Marco me fazendo entrar cômodo por cômodo.

Conheci cada um deles e isso me despertou a curiosidade em conhecer os artistas. O Sá veio até nós e encantado contou a história de cada tela ali exposta, a técnica usada e como faz para sobreviver de arte numa cidade tão pequena. “Tenho 49 anos, pinto mais a óleo, gosto de paisagens, principalmente telas, mas faço de tudo para sobreviver, até pintura de casa, pequenos serviços. Fui cabeleireiro por muito tempo, jogo cartas e sou o único umbandista em atuação por aqui. Moro só, numa casa numa chácara distante da cidade uns 3 km e esse é meu caminho, de lá para cá e de cá para lá, na maioria das vezes a pé e com telas debaixo do braço. Me viro para pagar aluguel, sobreviver e conto com a ajuda de pessoas que valorizam o que faço. Numa cidade pequena não dá para viver só da pintura”, conta Sá, fazendo questão que vá registrar um pouco do que fala, indo até sua casa.

Sá é mesmo um batalhador da arte, tendo em sua casa ateliê e uma tela de quase dois metros, que pintará para um cliente da cidade. Capricha no que faz, mas cobra pouco, ou o que lhe pagam e da forma como podem. E assim toca sua vida, um sujeito sorridente, de bem com a vida, desses que não reclama de nada, quer mais é continuar fazendo o que gosta. Ele tenta e vê-lo todo falante, falando do que já fez e dos planos para continuar fazendo é para encantar os que o conhecem pela primeira vez. Quis me mostrar outras casas com suas obras, outras pessoas que compram suas telas, acabou indicando algumas. “Sou muito conhecido por aqui e nunca me deixaram na mão”, conclui.

Quis também conhecer o Cirção, esse um garotão, 27 anos, com os pés no chão, pois além do traço refinado e da arte exposta em paredes, pinta letreiros e mantém emprego numa empresa de pavimentação. Descendente de japonês com uma retinta mulata é a exata mistura das duas coisas, desenhando por incentivo familiar e desde que se conhece por gente. “Vim com meus pais para cá quando tinha oito anos e não parei mais de pintar. Veja meu fusca, retoco ele nas horas vagas. Meu estilo é variado, misturo pincel e compressor, o tradicional com o moderno e assim espalho minha arte pelas paredes. Meu trabalho foge do grafite, pois não ando em grupos, faço tudo sozinho e atendendo a pedidos”, relata Cirção.

Fez questão de mostrar alguns dos desenhos expostos na cidade. Um numa escola infantil, feito recentemente, brincou fingindo chutar uma bola desenhada na parede. “Eu gosto muito do trabalho do Sá, me inspirei também no Fausto Bergocce o nome maior do desenho que conheço. Ia ver seus livros na biblioteca da cidade e rabiscava onde podia até conseguir meus primeiros trabalhos. Montei até um portfólio, com fotos da maioria dos trabalhos, mas não consigo viver exclusivamente disso. Ainda mais agora que serei pai, tenho que pensar isso tudo de forma mais séria, mas parar não paro nunca mais na vida”, conclui o artista diante de mais uma parede com seu trabalho exposto e após conhecer o artista Fausto, fonte de sua inspiração.

Seu Marco, Sá e Cirção são personagens vivos e atuantes de algo a sobreviver numa cidade tão pequena. Num passado não tão distante, outro artista, o pintor Fernando Montanher junto de um amigo que vinha de Bauru, o também pintor Baccan, retratavam a natureza e o rio Batalha, munidos de cavaletes e indo de um lugar para outro na região. Hoje, são eles a tocarem esse negócio da arte da pintura na cidade e o fazem com louvor, pois não tem quem não os conheçam por lá. Cada um na sua, fazendo e acontecendo e provando que é possível conciliar a arte com qualquer ritmo de vida, bastando querer e tendo coragem para enfrentar o touro a unha. Eles fazem isso e encontram quem os valorize.

CONTATOS : Marco 14.35891208 - Sá 14.96337921 e Cirção 14.97634233

2 comentários:

Anônimo disse...

Henrique

Suas histórias são sempre muito saborosas. E sabe o que gosto mais nelas? Voce não fala de ninguém endinheirado, só os iguais a nós. Abraços cariocas do
Pasqual

José Augusto disse...

Henrique...

conheço esses personagens, inclusive o Cirção, amigo de infancia. Ele pintava desenhos em nossos cadernos de escola... matéria não tinha, mas desenhos do Cirção não faltavam. kkk

abraços,

José Augusto