FRASES DE UM LIVRO LIDO (69)
NOITES COM ARGENTINOS E UMA REVELAÇÃO: MEDIANERA É ÓTIMO
Nos pernoites com meu pai no hospital fiz algo que deixei de fazer aqui do lado de fora do mundo, creditando a isso uma absoluta falta de tempo. Como somos bestas em abdicar de coisas, pessoas, lugares, acessos usando isso como justificativa. Meu filho cansou de me falar de um filme argentino e fui adiando de assisti-lo. Ontem, com um computador de mão e uma fita pirata plugada nele assisti o “MEDIANERAS – BUENOS AIRES NA ERA DO AMOR VIRTUAL”, filme de Gustavo Taretto, 2011 (http://www.amofilmes.com.br/?p=6809). É a história de dois jovens, que mesmo morando muito pertos, esbarrando-se a cada cruzada na esquina não se conheciam e daí por tudo um monte de fatos conspirando a favor e contra o inevitável encontro. O mais bonito do filme, além dessa vida desencontrada de uma metrópole foi a introdução do filme, as cenas iniciais, quando ambos produzem um sentido desabafo sobre a cidade onde moram e que serve para todos nós. Cada um do lado de cá, vê aquilo exposto sobre Bueno Aires e reflete dolorosamente sobre como é a vida no meio da selva de pedra do lugar onde mora. Lembrei-me também de uma fala do cantor argentino Fito Paez, quando de saco cheio do conservadorismo de sua cidade, soltou o verbo contra o 50% dos seus habitantes que pregam descaradamente o retrocesso, são contrários aos avanços e travam uma queda de braço dolorosa contra os que se mostram avançados e a propor o novo.Reproduzo abaixo a fala de cada um dos personagens no começo do filme. Vendo as imagens na tela é tudo tão mais claro, mas só com uma leitura e fazendo uma alusão com algo aqui de minha aldeia bauruense, algo muito parecido. Leia antes a visão arquitetônica da questão: http://www.arquitetonico.ufsc.br/medianeras. Primeiro a visão dele, o personagem Martín: "Buenos Aires cresce descontrolada e imperfeita, é uma cidade superpovoada em um país deserto, uma cidade em que se erguem milhares e milhares e milhares e milhares de edifícios sem nenhum critério. Ao lado de um muito alto, existe um muito baixo, ao lado de um racionalista, um irracional, ao lado de um de estilo francês há outro sem estilo algum. Provavelmente estas irregularidades nos refletem perfeitamente, irregularidades estéticas e éticas. Estes edifícios que se sucedem sem nenhuma lógica demonstram uma total falta de planejamento. Exatamente igual à nossa vida, vamos vivendo sem ter a mínima idéia de como queremos ser. Vivemos como se estivéssemos de passagem por Buenos Aires. Somos os inventores da cultura do inquilino. Os edifícios são cada vez menores, para dar lugar a novos edifícios, menores ainda. Os apartamentos se dividem em ambientes, e vão desde os excepcionais 5 ambientes com varanda, sala de jogos, dependência de empregados, depósito, até a quitinete, ou caixa de sapatos. Os edifícios, como quase todas as coisas pensadas pelo homem são feitos para nos diferenciar uns dos outros. Existe uma fachada frontal e posterior, e os pavimentos baixos e os altos. Os privilegiados são identificados com a letra A, excepcionalmente a B, quanto mais progride o alfabeto menos categoria tem o apartamento. As vistas e a luminosidade são promessas que raramente condizem com a realidade. O que se pode esperar de uma cidade que vira as costas para o seu Rio? Estou convencido de que as separações e os divórcios, a violência familiar, o excesso de canais de cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a abulia, a depressão, os suicídios, as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade, as contraturas, a insegurança, o estresse e o sedentarismo são responsabilidade dos arquitetos e empresários da construção. Desses males, exceto o suicídio, eu padeço de todos". Depois, a visão dela, Mariana: "Todos os edifícios, absolutamente todos, possuem uma face inútil, imprestável, que não é nem a fachada frontal e nem a posterior, é a “medianera”. Superfícies enormes, que nos dividem e nos lembram do passar do tempo, a poluição e a sujeira da cidade. As medineras mostram nosso estado mais miserável, refletem a inconstância, as rachaduras, as soluções temporárias. O lixo que escondemos sob o tapete, pensamos nelas excepcionalmente, quando, violadas pelos intempéries do tempo, deixam infiltrar suas reivindicações. As medianeras se tornaram mais um meio publicitário, que salvo raras exceçõe conseguiu embelezar-lhes. Geralmente, são propagandas duvidosas de supermercados ou fast food, anúncios de loteria que prometem de muito à quase nada, etc etc etc. Apesar de atualmente nos recordar da terrível crise que nos deixou desempregados. Os condicionadores de ar são erupções irregulares das quais padecem as medianeras, graças à antiguidade dos edifícios que não comtemplaram sistemas de refrigeração adequados para uma cidade cada vez mais quente. Contra toda a opressão que significa viver em caixas de sapatos, existe uma saída, uma fuga, ilegal, como todas as fugas. Em clara contravenção ao código de planejamento urbano, abrem-se minúsculas, irregulares e irresponsáveis janelas que permitem que milagrosos raios de luz iluminem a escuridão em que vivemos".
Viajei não só com a história, mas com esse entendimento de nossas cidades feito logo de cara, de sopetão, primeira visão do filme, explicitada solidão entre concretos e muros. Hoje, volto à noite para mais um pernoite hospitaleira com meu pai (deve ter alta amanhã ou segunda) e já reúno na minha matula, outros argentinos, pois com a Virada Cultural ocorrendo nas ruas bauruenses e não podendo lá estar, fico eu e meu pai vendo cenas platinas com “Um conto chinês”, com Ricardo Darin, “A dançarfina e o ladrão”, do Fernando Trueba, “Crônica de uma fuga”, do Isarel Adrián e “Madres de la Plaza de Mayo – Memória, Verdade e Justiça”, do Carlos Pronzato.
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