segunda-feira, 30 de setembro de 2013

MEMÓRIA ORAL (149)


CONVERSAÇÕES DEBAIXO DE UMA ESTAÇÃO FÉRREA
Os Encontros Ferroviários realizados em Bauru, esse o 5º, são na verdade, motivo mais do que usuais para reencontros mil. Bauru, como sabido, é terra de um famoso entroncamento férreo, unindo e interligando linhas da Noroeste do Brasil, Sorocabana e Cia Paulista. Isso por si só já é uma enormidade, algo mágico, lúdico, cheio de possibilidades, o grande impulsionador do seu progresso, porém, imagine quando tudo isso converge para debaixo do resistente teto de cobertura da gare da glamorosa estação da NOB, localizada no coração da cidade e desde a privatização das ferrovias meio alijada da cidade. Dela, Ignácio de Loyola Brandão disse certa vez tratar-se da “mais bonita estação do interior paulista”. Orgulhoso disso todo bauruense deveria ser (o ferroviário sempre foi), mas em dias como esses, 28 e 29 últimos, muitos passaram pelo bucólico lugar e confirmaram o veredicto do famoso escritor, tanto que o fervilhamento alcançou decibéis inimagináveis, motivo de novas histórias acontecendo ali naquele rico quadrilátero.

O que chama sempre a atenção dos que lá circularam são as pessoas e suas histórias. A demonstração inequívoca de que a chama ferroviária continua mais acesa do que nunca é o que vai sendo observado em cada novo contato. A composição da Maria Fumaça, com dois carros, um de primeira e outro de segunda classe é sempre um dos maiores atrativos, com cem vagas em cada viagem. Mais de duas mil pessoas passearam de trem nos dois dias, tudo gratuito, bancado pelo projeto Ferrovia para Todos, órgão ligado a Secretaria Municipal de Cultura, um dos apoiadores do evento, esse idealizado, organizado e levado adiante pela APFFB – Associação de Preservação Ferroviária e de Ferromodelismo de Bauru. É o caso de Joaquim Vieira, 81 anos, nunca foi ferroviário, mas ama a causa e a estação. Ouviu no rádio e veio passear de trem, trouxe um poema com o tema “Paixão” e o entregou para funcionária do Museu Ferroviário: “Eu saio de casa todo o dia em busca de gente que me ouça e distribuo minhas poesias para esses. Essa estação cheia de gente é um retorno ao passado”.

Pessoas com atitudes idênticas ao de seu Joaquim é o que mais se vê. Do nada surge uma moça morena, lágrimas nos olhos, não diz o nome, nem quis se identificar, mas diante de um grupo diz: “Meu pai foi maquinista. Ele me trouxe aqui para conhecer o seu local de trabalho quando era muito pequena. Eu subi numa locomotiva aqui nessa estação há trinta anos atrás, era menina e hoje ao ver isso aqui do jeito que está me deu uma tristeza imensa”. Um dos que a ouviu atentamente foi Buccalon, superintendente aposentado do Banco do Brasil, chegando a contar uma piada de maquinista para acalmá-la. Quando ela se vai, conta uma história sua passada nos trens: “Era jovem e fomos jogar no Mato Grosso, uma equipe inteira de trem e na última hora chega um que não estava na lista. Embarca clandestino e o escondemos na ida e na volta, em certos momentos enfiou-se no bagageiro e na volta, com o bilheteiro cheio de desconfiança, em certo trecho ficou dependurado do lado de fora do trem”.

Álvaro Scarco foi maquinista e encosta junto a um grupo para trocar ideias, quer também contar a sua, ouve a de muitos e deixa escapar o que também é o pensamento da maioria dos ali presentes: “Esse abandono causa dor, dilacera por dentro. Os trens chegavam e saiam daqui como um reloginho. Quem se espanta com os horários precisos dos trens europeus não sabe como era isso aqui, tudo tinha um horário rígido e quase não ocorriam atrasos”. Audren Victorio passou para fazer a abertura do evento, trabalho de cerimonial e quase foi obrigada a cantar algo com tema férreo. Da conversa com um dos organizadores, Ricardo Bagnato, deu para extrair algo assim de soslaio: “Não existe nada igual a essa estação aqui na cidade”. Ricardo sabe bem disso, tanto que tinha na ponta da língua algo mais para a abertura, quando instigaria o prefeito sobre a viabilidade de apressar o restauro da estação. O prefeito não veio e a cobrança acabou ficando para outro dia e instância.

José Carlos Aguado foi jornaleiro nos trens que iam de Bauru até Corumbá, isso no período de 1960 até o início de 1965: “Era muito jovem e a empresa que trabalhava, a Distribuidora de Revistas e Jornais Salomão Gantos ficava ali naquele lado. Vendia jornais e revistas pendurados pelo corpo e pelo corredor dos carros. Lembro de tudo ao voltar aqui, tinha um vagão onde descansávamos por alguns instantes, mas gritávamos muito no trecho todo. Isso tudo não me sai da memória”. Ele é apenas mais um, Reginaldo outro. Morou em Bauru por alguns anos vindo de São Paulo e aqui veio por causa do amor aos trens. Morou num hotel e vendia revista num sinal vestido de palhaço para sobreviver, participando das reuniões da Associação e diariamente circulando pelos trilhos. Causou até desconfiança, mas tudo não passava de puro amor. Ficou até quando deu, mas ao conhecer a atual esposa, foi-se para Jaú, distante 100 kms e hoje dedica-se à causa férrea mas na nova cidade escolhida para morar.

O falante e espevitado Geraldo Silva Carvalho, negro, mirrado, de terno o tempo todo, fala pelos cotovelos, traz a bíblia debaixo do braço e envolta num saco plástico, sempre cheio de sugestões para apresentar as autoridades sobre o que fazer com tão bela estação. “Se o prefeito aparecer por aqui vou lhe dar uma sugestão que não vai ter como não executar. Eu só quero ajudar, estou aqui desde os 16 anos e não suporto mais ver essa estação fechada. Não sei se sabe mas vendo doces pelas ruas e em cada lugar que passo, converso muito, ajudo as pessoas a não se desviarem do bom caminho. Se me permitirem, ajudo com boas ideias para isso aqui não ficar mais abandonado”, conta para os que lhe dão atenção. Sentada numa das lanchonetes da estação está uma distinta senhora envergando uma camiseta com escudo do Noroeste de Bauru: “Fui faxineira, merendeira e trabalho no Noroeste faz um tempão. Lá tem muita coisa que foi feita por ferroviários e quando venho aqui, entristecida lembro-me da situação hoje do time e vejo que é quase a mesma dessa estação. Não tem como não ficar triste”.

Fábio Pallotta é professor e defende a causa do Patrimônio Histórico, acaba de voltar de um evento do mesmo nível em Rio Claro: “Lá participei de algo com prefeito, vice, presidente da Câmara e muitas autoridades locais. Eles querem fazer algo e já por lá, aqui vejo que tudo demora demais para acontecer”. Ricardo Fronteira é apaixonado pela causa e faz questão de tirar um foto ao lado da locomotiva Wanderléia (sainha rodada, curta como a da cantora): “Como demora para acontecer as coisas relacionadas à ferrovia no Brasil. Olhemos para os exemplos de fora, mas isso tudo parece não fazer sentido aqui, uma pena”. E assim como esses são quase todos os presentes, cada um querendo dar uma opinião, falar do seu envolvimento com a ferrovia, dizer dos motivos de ali estar. Foi assim o tempo todo, gente disposta a conversar, expor ideias, apresentar sugestões, discutir o momento atual e o futuro dos trilhos no país. Gente como Mariza, Vinagre, Roque, Jesus, Bento, Joana, Antônio, Tião, José, Chico, Orlando, Oscar e tantos outros. Gente interessada e disposta e dedicar boa parte do seu dia a dia ao tema trens. Gente querendo que a a linda estação e os trens de passageiros voltem a funcionar. 

2 comentários:

Anônimo disse...

no livro "O verde violentou o muro", o grande Ignácio fala com carinho das lembranças de nossa estação...
Silvio Selva

Anônimo disse...

Henrique

Fiquei muito grato em saber do paradeiro do Reginaldo, aquele moço que se vestia de palhaço e ficava no cruzamento da Nações Unidas com a Nuno de Assis vendendo para sobreviver aquelas revistinhas infantis de pintar. Li tempos atrás no seu facebook sua preocupação sobre o desaparecimento dele e perguntava se alguém sabia dele. Ninguém o respondeu e agora ele aparece no encontro realizado na estação, casado e morando em Jaú. Um boa notícia.

Alvarenga