quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

MEMÓRIA ORAL (152)


ALGO DE PIONEIRA TRABALHADORA DOS TRILHOS - 80 ANOS PASSADOS

MOACYR LOPES é um retinto senhor de 81 anos, paulistano da gema, mesmo tendo nascido em Gália, interior paulista (40 km de Marília e 60 km de Bauru), uma cidade que já foi cortada por trilhos urbanos e hoje sua fama é por ser considerada a Capital da Seda. Esse senhor saiu de sua cidade natal aos dois anos de idade só voltando uma única vez aos 17, para uma visita de algumas horas, acompanhado de seu padrinho, um delegado de polícia de Garça e depois nunca mais voltou. O fez agora, 60 anos depois, na segunda, 23/12, acompanhado de sua esposa, Darcy Soliva da Costa, a filha desta Ana Beatriz e deste escriba, acompanhado de seu pai, Heleno, 85 anos. O grande motivador foi esse breve reencontro de Moacyr com sua cidade, seu passado todo envolto em fatos nunca revelados.

A viagem de ida, passando por Piratininga, Cabrália Paulista, Duartina e Fernão foi ótima para saber mais detalhes da saga da mãe de Moacyr, JUDITE LOPES, falecida esse ano aos 101, rodeada pelos quatro filhos (as), todos nascidos nas mesmas circunstâncias. Ela é uma das mulheres pioneiras da história da ferrovia paulista, numa história nunca desvendada pelos seus. “Cresci em São Paulo ouvindo a história de minha avó Dalila, que cozinhava para os que iam construindo a ferrovia. Pelo pouco que colhi, vivia numa espécie de acampamento, mudando de um lugar para outro. Só muito tempo depois fui me atentar tratar-se dos primórdios da ferrovia e elas pioneiras, das primeiras dentre as trabalhadoras mulheres na ferrovia. Nasceram ambas em Bananal, pois querendo ouvi-las reviver histórias, era só lembrar esse nome, que tudo se reavivava nelas, lascando a contar a história desse lugar”, relembra o galiense Moacyr.

Ele nunca foi muito ligado em desvendar a história dos primórdios da mãe, uma brava e resistente senhora, negra retinta e dos porquês de não ter o nome do pai no seu registro de nascimento, nunca conhecido por nenhum deles. “O que mais importa a todos é o fato dela ter conseguido nos manter unidos, criando todos sempre ao seu lado. Quer mais valor que esse?”, pergunta ele. Sim, deduz-se que Judite viveu um curto período de sua vida em Gália, onde conheceu um distinto senhor que a engravidou e depois nunca mais um soube nada do outro. “O que sei do meu pai é que se chama VICENTE, era português, tinha um vasto bigode e que possuía bens na região. Nada mais. Depois fui perceber que ter um bigodão era a coisa mais comum naquela época. Aos 17 anos, vim de trem de São Paulo para rever meu padrinho, que na época era delegado de polícia muito respeitado em Garça, conhecido como Joãozinho Soldado. Recordo ter descido na estação, ser recebido por esse e dali entramos logo numa casa, onde me foi servido um almoço, depois voltei, passei por Garça e retornei para São Paulo. Nunca mais tive notícia do padrinho, nem de nada de Gália”, a curiosidade crescia na medida em que nos aproximávamos da cidade.

Deu tempo dele contar uma última história desse dia, pouco antes de avistarmos o portal de entrada de Gália: “No almoço que me foi servido, colocaram no meu prato uma bisteca imensa, gordurosa, que não saberia como comer. Eu ali, de terno branco, percebendo uma distração de todos, dei um fim na mesma a enfiando no bolso do terno. Quando viram que havia terminado, fizeram de tudo para me servir outra. Recusei e foi uma sufoco me desfazer daquela que me engordurou todo o terno”. Foi inevitável a pergunta: “E ninguém deu por falta do osso da bisteca?”. Entre muitos risos adentramos a avenida que nos levaria para o centro da cidade, a Martiniano Inácio Gonçalves. Véspera de feriado, a cidade estava praticamente deserta, quase ninguém nas ruas e uma das primeiras vivas almas que encontramos foi num estabelecimento comercial.

Chamando a atenção na entrada, uma ampla loja de móveis rústicos, a Madeira Maciça, com dois salões, abarrotados de pesados e criativos móveis, vendidos ali e feitos justamente no barracão onde antes era o depósito da ferrovia, o último resquício existente hoje de que algum dia uma ferrovia havia cortado Gália. Descanso para as pernas e motivo para as primeiras indagações. Pergunto para Patrícia, uma das proprietárias algo de uma velha história do cemitério local, na saída para Fernão e num elevado, quando diziam que uma moça envolta em luz ficava sentada num dos seus muros à noite, cumprimentado os amedrontados viajantes que necessitavam de ali passar. Sua resposta foi curta e conclusiva, o que certamente geraria, se tempo houvesse longo bate papo: “Conheço essa e muitas outras, esse cemitério é rico nisso”.

Quase horário do almoço, a parada obrigatória foi no restaurante Gutierrez na avenida central da cidade, a São José, na primeira quadra após a praça, indicação da Patrícia. A primeira impressão havia sido boa, uma cidade limpa, bem arborizada, uma praça ocupando dois extensos quarteirões e até uma cobertura, num dos lados, devendo ser o local apropriado para as festas locais. No primeiro tour algo havia nos chamado a atenção, uma casa com os muros pintados e conclamando a ninguém ali ir com intenção de encheção de saco. A frase principal era um recado dessa forma: “Eu sou iluminada e não preciso de ninguém”. Ainda antes do almoço, Moacyr no balcão do restaurante estranha a forma como lhe servem uma caipirinha com pinga num copo e limão sendo espremido num outro. Bebe separadamente e diz serem estranhos os hábitos de sua terra, isso para ele que cresceu trabalhando como garçon na região do bairro do Bexiga, reduto de gente como Adoniran Barbosa, depois funcionário público em diversas atividades até a aposentadoria.

Grupo reunido e a postos para a primeira incursão pela cidade, eis que Moacyr e seu Heleno resolvem não aderir ao tour. Preferem permanecer numa mesa na calçada do bar bebericando umas cervejas e jogando conversa fora com alguns outros frequentadores. Essa demonstração e pouco interesse em conhecer a igreja de São José e seus atrativos afrescos, o estádio de futebol local, nem as instalações da fabrica de seda, a famosa Beraldin, com loja especialmente aberta para atender turistas e muito menos o local onde resiste ao tempo a única recordação da ferrovia, o barracão do armazém. Tudo foi feito quando conseguimos que os dois adentrassem o veículo e uma passada pelo citado barracão foi inevitável. Poderíamos desvendar algo de sua história procurando contato com algumas pessoas mais velhas da cidade, detentoras de resquícios da história oral da cidade, mas diante do seu desinteresse tudo foi deixado de lado.

No retorno, ficamos sabendo mais dos detalhes e dos motivos desse aparente desinteresse. “As histórias que sei já me bastam. Imagino como tudo tenha se dado e os detalhes não irão alterar em nada minha vida. Minha avó e minha mãe representaram algo surreal e pouco conhecido do cenário da história das ferrovias, a da participação das mulheres. Esse nada saber sobre meu pai nunca me trouxe problemas. Minha mãe preencheu tudo em nossa vida e estivemos todos ao lado dela até o fim, isso nos basta”, relata. Ele não quer ir buscar dados sobre o assunto, queria fazer uma viagem alegre, só isso, mas não me pede para que nada faça em busca da obtenção de algum elo que possa desvendar a história do início de sua vida ou parte dela. Darcy, a esposa, nutre o mesmo pensamento, ficando mais curiosa quando lhe informo de um livro, o “Mulheres, trens e trilhos”, baseado na tese de doutorado da professora de História, Lídia Maria Vianna Possas, que desvendou e elucidou com a obra publicada pela Edusc em 2001, o importante e tão discriminado papel da mulher na saga da construção e instalação da ferrovia no centro oeste paulista.

“Elas estavam lá: no espaço trilhado pelos caminhos de ferro! (...) Pude vislumbrar o funcionamento do sistema de dominação e exclusão, reificado pelo discurso da narrativa oficial. (...) Procurei mostrar que as mulheres chegaram com os forasteiros nos rastros dos trens e trilhos. (...) A ferrovia foi o instrumento do poder político das oligarquias paulistas. (...) Apresentavam-se sem  relevância política e socialmente desvalorizadas. (...) Permaneceram, assim, às margens, carregando imagens ainda repletas de dúvidas sobre sua conduta, seja moral ou ideológica, ao tomar posições mais politizadas e ao defender seus direitos como cidadãs. (...) Encontraram já pronta e fortemente arraigada uma metáfora, ‘eram todas vagabundas’. Fazer de conta. Resistir, aceitar, provar o contrário, permanecer em silêncio ou retirar-se foram algumas das estratégias assumidas pelas mulheres ferroviárias. (...) Uma das fortes imagens construídas sobre as mulheres na ferrovia, especialmente aquelas que foram  as pioneiras, como sendo ‘todas vagabundas’, instiga a minha pesquisa”, essas algumas das frases recolhidas por mim do citado livro e que servirão de foco instigante para tentar desvendar algo mais sobre Dalila, Judite e Vicente.

Num outro trecho, algo mais, na voz de dona Sazinha, esposa de um chefe de estação, que acostumada às constantes mudanças impostas ao marido e consequentemente à sua família, deixou registrado à autora em 1998: “o vagão de trem, tendo ao fundo cargas para transportar, era ao mesmo tempo a minha casa, o meu quarto, a minha cozinha – lugar onde criava a minha família”. Quem me diz que algo parecido não ocorreu com dona Dalila, tendo que criar sua prole no meio daquela balbúrdia, vida cigana repassada à filha Judite e num desses lugares, justamente Gália, o fortuito encontro com certo Vicente e daí o nascimento de Moacyr. No momento aproveito esses dias de final de ano para reler do livro da professora Lídia, achar um exemplar para enviar à dona Darcy, depois tentarei ao meio jeito e modo um contato com pessoas que possam me ajudar nessa pesquisa. Aguardem novidades e o provável desvendar de algo oculto no texto do poeta maior de Bauru, Rodrigues de Abreu, quando num momento se referia no que o trem trazia e levava em suas viagens: “Mil forasteiros chegaram nos trens da manhã e vão, de passagem, tocados de pressa para o El-Dorado real da Zona Noroeste”.

Obs.: Tenho que confessar. Darcy é minha sogra e Moacyr seu marido. E a história de dona Judite muito me chamou a atenção desde o primeiro momento em que a ouvi.

7 comentários:

Anônimo disse...

Essas histórias me encantam ... o sabor de mistério ... a ingenuidade dos acontecimentos ... a bravura do ser humano diante das dificuldades ... lindo
Helena Aquino

Anônimo disse...

Gália, cidade de tantas histórias.... Obrigada!

Olynda Aparecida Bassan Franco

Anônimo disse...

Carissimo Aquino,
Antes de mais nada, um bom ano para você.
Continue essa batalha, essa luta, palmo a palmo.
Está ai outro personagem para seu livro.
A proposito: onde consigo comprar um exemplar desse livro sobre mulheres, trens e trilhos?
Me interessa muitisismo.
Puta abraço
Ignácio de Loyola Brandão

Anônimo disse...

só isso ja daria um belo livro.
Lázaro Carneiro

Anônimo disse...

Alexandre Pereira Cardoso Neto veja esse artigo interessante de Henrique Perazzi de Aquino pra vc que é galiense. Abs
Ademar Cassola

Anônimo disse...

Obrigado Ademar Cassola muito legal essa historia.
Alexandre Pereira Cardoso Neto

Anônimo disse...

NADA COMO TER HISTÓRIA PARA CONTAR E REVIVER.
UM ABRAÇO EM TODOS
Paulo e Roseli Loureiro - Rio RJ