O CASAL DESBRAVADOR DO RECIFE VELHO – AROEIRA PURA COM MUITA NOSTALGIA
Conhecer o Recife Antigo acompanhado de alguém sendo
cumprimentado em cada esquina naquele quadrilátero é um raro privilégio. Esse
alguém é URIAN AGRIA DE SOUZA, professor de Desenho, escritor, poeta e pintor,
um paraense que já rodou boa parte do Brasil e depois de certo tempo, resolveu
temporariamente acampar na dita Veneza brasileira. Junto de sua companheira de
todas as horas, a educadora sertaneja CARMEN LUCIA BEZERRA BANDEIRA, oriunda da
fronteira da Bahia com Pernambuco formam um casal dos mais reconhecidos nas
ruas do trecho entre o rio Capibaribe e os arrecifes do Oceano Atlântico, onde
casarões estão passando por um processo de restauração e onde existe uma forte
resistência da verdadeira cultura local, concentrada e sobrevivendo com certo
apoio institucional. Mesmo na adversidade, o reduto continua cheio de encantos
e de personagens riquíssimos em algo peculiar, mestres na cultura popular e
cheios de muita história. O histórico pedaço pulsa história e trombar com tipos
populares é algo mais do que natural.
Urian é um desses indomáveis cabras da peste, com parada incerta
e não sabida. Já viu quase de tudo na vida e só se deixa levar pelas coisas de
antanho, daí encontrou em Carmem algo similar, formando uma simbiose como a
cunha e o cunhão. Vivem num entrelaçamento bonito de ser visto. O encontro com
eles não foi assim tão casual. Ana Beatriz, minha parceira foi sua aluna no Rio
de Janeiro e desde os tempos dos cursos por lá continuaram num relacionamento
de muita conversa e afinidades intelectuais e de linha de pensamento. Quando
aportamos pelo Recife por motivos outros, lá estavam os dois para nos
apresentar a cidade, o u melhor, o Recife Velho. Marcamos numa de suas
beiradas, no hoje Shopping Paço Alfandega, ao lado de um dos poitns de encontro
de gente em busca de conversa, a Livraria Cultura. Foi ali, num local que antes
abrigou um famoso hospital, lugar escolhidos para tomarmos nossas primeiras
cervejas.
Caminhamos pelas ruas e isso é indescritível para um forasteiro.
Queria ir parando em cada canto, fotografar tudo, registrar cada tipo que ia
parando o casal para os cumprimentos de praxe. Fomos para a beirada do mar, lá
do lado de lá uma ilha e cheia de obras do Brennand. Caminhos mais que
demorados, paradas constantes em vários lugares, explicações detalhadas de algo
que por ali tenha ocorrido no passado e até as repercussões até os dias atuais.
Tudo inebriante, envolvente. A famosa sinagoga israelita, a primeira do Brasil,
uma feira bem diante dela, tomando calçadas, produtos artesanais em abundância
de cores e ofertas. A primeira parada mesmo foi num lugar dos mais propícios
para se explicar algo mais daquilo tudo, o Bar e Restaurante teatro Mamulengo.
Fomos um dos primeiros a chegar e dali a pouco, tudo à nossa volta é tomado de
gente.
É que ali acontece todos os domingos à tarde a apresentação do
Teatro Mamulengo, linda manifestação popular tendo à frente uma só pessoa, o mamulengo
Jurubeba, José Júlio, desdobrando-se em por detrás dos panos representar o
papel de mais de vinte personagens, passando depois o chapéu para coletar o que
a praça cheia quer pagar pelo apresentado. Ao lado dessa apresentação rola outra,
a do grupo Forró de 1 Real, comandado pelo Douglas Donato e interagindo com o
outro espetáculo. São dois num só, tudo pelo preço do que você quiser colocar
no chapéu. A praça ferve, a criançada se diverte e os artistas fazem algo muito
simples, sem grande embromação, tanto que gente como Urian, escolado pela vida
faz questão de ali aportar e permanecer, pois sabem que é nessa simplicidade
que reside as grandes coisas. Foi ali que nos levaram e ali conhecemos mais
gente da melhor envergadura recificience. Cada um que ia surgindo à nossa
frente, além dos cumprimentos de praxe ao casal, tinham algo rico para expor
aos presentes. Douglas canta forró que é uma maravilha e ainda tive tempo de
gravar algo dito por ele: “Tá pensando que isso aqui é o Rock in Rio, nada
disso, a gente tem cultura por aqui. Quem t´pa fazendo temporada lá o tal do
Michel Telló. Ninguém mais aguenta isso. Nós estamos em outra. O cara mais
underground que eu conheço se chama Zé Ramalho”. E aproveita para tocar uns
forrós dele.
Quem vem nos atender é o garçon Barack Obama, uma espécie de
gerente da casa, aproveitando-se de uma nesga de semelhança com o presidente
norte-americano, trabalha travestido com as cores daquele país, mas fica na sua
quando lhe perguntam sobre gravar as conversas alheias. Como sabe que o
presidente yanque não vive um bom momento, fala o mínimo possível e quando
perguntado responde sempre que “o forró é que vale mesmo a pena”. Junto dele e
até dando umas canjas em certos momentos está um senhor de aproximadamente uns
70 anos, que poucos sabem o nome, mas todos conhecem o apelido, “Lampião”. “Um
ser do lugar, vive de favores, mora em lugares aqui e ali, mas nunca lhe falta
um teto e nem comida. Virou uma instituição daqui, uma pessoa querida por todos”,
conta Urian. Lampião circula com um chapéu cravejado de moedas e muitos já lhe
ofereceram grana alta pela peça, ele se aproxima de nós e diz: “Essa é minha
preciosidade. Não vendo, não troco e não empresto”. E sai dali para bater bumbo
junto dos músicos.
José Júlio quando o espetáculo termina me deixa conhecer sua
mala, onde guarda todos seus apetrechos de trabalho. “Eu já viajei muito, mas
hoje o povo daqui me faz feliz. Saio para apresentações quando sou convidado.
Esse pouco ganho aqui me satisfaz. Não preciso de muito e sim de muito calor
humano e isso não falta por aqui”. Cada um fala algo que toca lá no fundo e o
casal que li nos levou, Urian e Carmen pouco falam nesses momentos, mais
observam. Sabiam que nos trazendo ali teríamos esse choque cultural e deixou a
coisa rolar até não mais poder. Quando a noite começava a escurecer a praça,
disse que era chegada a hora de caminhar para outro ponto e lá fomos nós, olhar
aqueles prédios todos, alguns sendo restaurados, outros ainda semi abandonados,
mais cheios de vida. Voltamos todo o trajeto feito inicialmente e fomos aportar
lá perto do shopping, num barzinho onde uma inusitada banda iria começar a
tocar dali a instantes. Lá do outro lado um forró, do outro um jazz na calçada.
De queixo caídos ficamos observando o que ia se consolidando ali diante de
nossos olhos.
Um mestre do sopro ali diante de nós e tocando de tudo, junto de
mais três músicos. O rei da malemolência tem nome e sobrenome, trata-se de
Edson Rodrigues, uma daquelas sumidades que já tocou com a cidade inteira e
gosta de estar ali na calçada, numa tarde quente de domingo, pois sabe que ali
seu trabalho será reconhecido. É verdade, enquanto tocam uma legião fica
absorta ouvindo-os sem conversar. A música entra por aquelas vielas, sai por
outras e deixa todos por ali meio que em plena levitação. No intervalo não resisto
e vou bater um papo com um dos músicos, o contrabaixista Nando Rangel. Digo ter
ficado impressionado com a música deles. “Não vivo disso aqui não, todos
tocamos porque gostamos, eu sou professor universitário de música e não consigo
abandonar de tocar com gente igual a esses aqui. Nós nos atraímos”, conta e me
presenteia com seu CD, o da banda “Contrabanda”, com a participação também do
maestro Edson. Urian não me vigia, deixa a coisa ir rolando, pois sabe que iria
impressionar a todos. Ao seu lado não param de surgir gente que faz questão de
cumprimentar, efusivos abraços. Não resisto e compro o tal do pirulito de metro
e também uma luneta estreboscópica, a do Caleidoscópio Fantástico, que não
visualiza nada, mas tudo vê. Coisas de quem faz e vive de pequenos negócios pelas
ruas. Como dizer não para tão simpáticas pessoas.
Saímos de lá já com a hora bem adiantada e já no dia seguinte
seria o dia do retorno. A despedida foi numa segunda e num lugar bem longe do
centro e de tudo o que tenha a cara de modernidade. O casal nos levou para a
última cerveja e uma comidinha pra lá de
nordestina no Mercado da Encruzilhada, um lugar cheio de ervas, flores, cheiros
agradáveis e gente com a cara de que o lugar é de muita responsa. Ali ganho um
livro com poemas do Urian e fico de retribuir enviando o meu (o que faço quase
um mês depois). Num momento em que a conversa ameniza aproveito e dou uma
folheada nos versos, lá encontrando essa jóia mais que rara, seu poema Fóssil: “As
águas se foram/ e me guardei pedra./ Anos, séculos, milênios,/ Integrados,/
somos um só minério;/ um velho desenho,/ uma escrita,/ uma lição/ de
solidariedade”. Parece que tudo havia sido escrito para nós ali naquela mesa da
periferia do Recife, um bando de fósseis vivos, todos em busca de um porto
seguro, cada um se segurando na solidariedade do outro. Nos despedimos com
aquele sabor de quero mais. Urian é tão enfronhado com as coisas de lá que não
nos deixou pegar um taxi qualquer, liga para um seu amigo e esse nos leva para
o hote e de lá para o aeroporto. Já sentado no avião, olhando pela janela o
Recife leio a dedicatória que me fez: “Henrique, sertanejo como eu, navegando
nas águas desse povo fantástico – Recife 16/09/2013”. Eu chorei, pois após seis
dias no Recife só fui conhecê-los no penúltimo dia. Perdemos muito com isso,
mas ganhamos tanto em tão poucas horas.