DAS TROMBADAS DESTA VIDA E DAS CONVERSAS FLUINDO DE REENCONTROS
Tempos de reclusão e os encontros possíveis acontecem cada vez mais difíceis, inesperados e quando ocorrem, uma alegria incontida, primeiro por saber que, após tanto tempo – mais de ano e alguns meses de pandemia – a pessoa continua bem, disposta, firme e rígida. Das trombadas da vida, das inevitáveis escapulidas, escapadelas, fugas e saídas obrigatórias e inadiáveis, hoje fui levar a mana Helena Aquino no Posto de Saúde da vila Cardia, 9h40, horário que ela tinha marcado para tomar sua vacina. Chegamos no horário e um aglomerado estava ali do lado de fora, algumas cadeiras no local e os agendados pelo sistema virtual, seus nomes já nas listas. Bastava chegar e se mostrar presente, daí aguardar.Queria espera-la no carro, lendo um livro, mas ela insiste com um forte argumento: “E quem vai me tirar a foto com o cartaz do SUS?”. Desci com ela e logo de cara encontro o ex-vereador Ávila, morador ali das redondezas, aposentado como diretor do IPA – Instituto Penal Agrícola, memorialista das histórias da vila Cardia. José Eduardo Ávila sempre foi um bom papo e mesmo sempre tendo militado em partidos considerados por mim conservador, nunca fugiu do com diálogo e da boa conversa. Ele é desses que, vez ou outra, quando a conversa acumula, aparece no portão do Mafuá e ali entramos, sentamos e proseamos. A conversa rende, pois Ávila sabe ouvir e com ele sempre travei ótimas conversações. Ele, evangélico, saca tudo o que está em curso e não se deixa levar, se mostrando muito descontente com o rumo dos acontecimentos. Só de vê-lo ali, uma só certeza, o papo ia rolar e pelo que me conta, estando ali pelo mesmo motivo da mana, a vacina, há quase uma hora ali, a conversa podia ser longa.“Não esquente. Estamos em plena pandemia, mas já que estamos aqui e teremos que esperar vamos pra conversa”, sua proposta. Inevitável a prosa versar sobre os desmandos deste país e da cidade onde moramos e ele um dia já foi vereador. Tanta gente assumindo funções lá em Brasília sem qualificação para os postos onde estão atuando e por aqui, citamos alguns que aceitaram trabalhar na atual e na administração anterior, mas nada sacam daquilo que estão a fazer. Estávamos dando os primeiros pitacos quando surge um mascarado conhecido e se junta ao grupo, José Alves, também velho conhecido. Este foi soldado da Polícia Militar e agente penitenciário, quando veio a se aposentar. Desde então, trabalhou como moto-taxista pelas ruas de Bauru. Conta das dificuldades de continuar trabalhando com a moto, pois um joelho já apresentou problemas e quando estava achando que a recuperação ia acontecer, eis que o outro também apresenta a repetição da artrose. Parou de vez e agora está só dentro de casa, passando ao filho as antigas funções e rotas.
Quando estávamos a discutir sobre a questão do ocorrido ontem na favela do Jacareriznho, no Rio de Janeiro eis que surge outro conhecido e se junta ao grupo, o professor da Unesp Bauru, Juarez Xavier. Quatro em busca da primeira da dose e eu que tomei ontem. Juarez chega a tempo de ouvir o que penso sobre o ocorrido: “Para mim, a chacina foi para eliminar os traficantes, liberando tudo para outro grupo criminoso, a milícia”. Juarez concorda: “É a impressão que estamos tendo”. José Alves diz que, para ontem ouviu a reportagem de uma TV e depois teve o cuidado de ouvir de outra, onde o posicionamento era diferente. Eu comento: “Um é contra e outra é a favor do Bolsonaro”. Ávila ri e diz que está difícil raciocinar diante desse fogo cruzado. A conversa a partir daí, gira em torno de outros temas, algo natural diante de quatro pessoas diversas e se encontrando casualmente no quintal de um Posto de Saúde e após longos meses sem se verem.
As tais trombadas da vida são isso. A diversidade possível em conversas que ocorrem assim do nada, quando pessoas se reencontram por acaso. Estava envolvido nelas, quando Helena, a irmã, que até então tinha se mantido à distância, tentando ouvir quando a chamava, pede para ir tirar uma foto do Ávila tomando a vacina. Entro no reservado e me pedem para não fotografar a profissional de Saúde, o restante é possível. Diante do mesmo cartaz que leve ontem quando tomei a minha, Ávila toma a sua e depois de mais uns quinze minutos de espera, ela também. Brinco com as enfermeiras que, diante das dificuldades do momento, emprego cada dia mais difícil vou, a partir de hoje, manter plantão na entrada do posto e oferecer meus serviços para fotografar interessados por módicos preços. Saímos para fora e um grupo de mulheres pede para deixar o cartaz do “Viva o SUS” com elas. Juarez e José Alves confabulam, cada qual com uma visão de mundo, bem diferentes um do outro, mas ali uma tentativa de juntar os cacos e ver o que ainda pode ser feito para nos salvarmos da desgraça de um desgoverno negacionista.
Me despeço, eu e Helena, a levo em sua casa e volto para a minha pensando nesse mundo de conversas só possíveis desta forma, nada marcado antecipadamente. Quando esperava reencontrar esses três? Gosto disso e torço para, diante de todas as diferenças, possamos todos continuar dialogando e buscar resolver as diferenças, buscar nas aproximações algo salutar que nos faça retomar este país, saindo deste fundo do poço onde Bolsonaro nos meteu. Qualquer nova possibilidade é uma nova chance de irmos afunilando as ideias e tentando limar as diferenças. Desunidos, mesmo bem diferentes, tudo será muito mais complicado e difícil.
Está mais do que evidente que, na chacina de ontem, algo para favorecer ainda mais a milícia, milicianos e fortalecer este desGoverno em curso. Ou o Brasil dá um cabo isso o quanto antes ou amanhã já será tarde demais.
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