ELE PRÓPRIO SE DENUNCIOU
Há discursos que valem mais pelo que revelam do que pelo que pretendem dizer. Na sessão de 30 de junho da Câmara Municipal de Bauru, enquanto o plenário enterrava apressadamente a CEI do Fundo Social, o presidente da Casa, vereador Marcos de Souza (MDB), resolveu — talvez sem calcular o impacto — levantou o véu do assistencialismo eleitoral.
Num tom confessional, Marcos narrou o drama de um senhor com deficiência que vendia guardanapos e potes na esquina da Drogasil, pedindo ajuda durante a pandemia. Com emoção, contou que encaminhou o caso ao Fundo Social. Anos depois, o mesmo senhor recusou apoiar sua candidatura dizendo já estar “comprometido com Damares do Social”, referência à ex-assessora Damares Pavan, pivô da denúncia que a CEI arquivou.
Tudo pareceria um lamento banal sobre os efeitos do clientelismo, não fosse a sequência do discurso: Marcos acusou, com todas as letras, o uso da estrutura do Fundo Social para angariar votos, mencionando inclusive o salto de votação de Damares — de 166 votos como "Damares Pavan" em 2020 para 489 votos como "Damares do Social" em 2024, votos estes que foram se somar aos votos da coligação que elegeram a prefeita.
A denúncia — feita no calor da tribuna, mas de forma clara, objetiva e registrada — foi reconhecida imediatamente pelo vereador Eduardo Borgo, que pediu que constasse integralmente em ata. E mais: alertou para o risco jurídico da fala, uma vez que se confirmada a prática de compra de votos atrelada ao Fundo, pode comprometer toda a chapa do PSD, partido da prefeita Suéllen Rosim e de vereadores da atual legislatura.
Sim, senhoras e senhores: o presidente da Câmara, da base governista, acusou, ao vivo, em plenário, a utilização de um programa social para fins eleitorais — e ainda votou pelo arquivamento da CEI. Se não é tragédia, é comédia institucional.
A fala é relevante por dois motivos. Primeiro, porque revela que há conhecimento dentro da base da prefeita de que a máquina pública pode ter sido usada para fabricar votos. Segundo, porque o próprio presidente reconhece que nem todas as verdades foram ditas na CEI. Não por acaso, justificou seu voto com a frase clássica de quem já entregou os pontos: “voto com a minha consciência tranquila”.
Tranquila para quem?
Se há indícios de utilização do Fundo Social para campanha — e há —, se há registro da denúncia feita por um vereador — e há —, se há o reconhecimento de que beneficiários de cestas básicas se tornaram base eleitoral — e há —, o caso ultrapassa em muito os limites do regimento interno da Câmara.
É matéria para o Ministério Público Eleitoral. E mais: é caso típico de abuso de poder político e econômico, passível de cassação de mandato e invalidação de chapa, conforme previsto na Lei Complementar 64/90.
Mas talvez o mais grave não seja a denúncia em si — é o ambiente de normalização da ilegalidade. Um vereador relata o uso de programa social para alavancar candidaturas e, minutos depois, aprova-se o arquivamento de uma comissão que deveria justamente investigar o uso irregular do Fundo.
Marcos, ao contar sua história, pode ter aberto uma brecha jurídica que nem ele imagina. E Eduardo Borgo, atento, fez o que qualquer parlamentar responsável faria: solicitou o registro da fala como potencial prova. Porque quando a omissão é o padrão, o simples ato de escrever o que foi dito já é um gesto de resistência.
Resta saber se o Ministério Público — agora instado formalmente — terá coragem institucional para ir além da ata e seguir o rastro do voto que começa com uma cesta e termina em 489 promessas.
Em Bauru, parece que não foi a oposição quem denunciou a base. Foi a própria base quem tropeçou na verdade.
Fernando Redondo
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