domingo, 31 de maio de 2009

DIÁRIO DE CUBA (30)

UM BATE-PAPO COM UM DIRETOR DE ESCOLA PARA “NINOS”
Esse diário, idealizado após uma viagem feita a Cuba em 2008, por 19 dias, na companhia do amigo Marcos Paulo, continua rendendo capítulos e mais capítulos. Eles vão se estendendo, talvez algo lá do meu interior, que gostaria que essa viagem nunca tivesse terminado. Desde a chegada, em 08/03, até esse relato, a manhã de17/03/2008, uma segunda-feira, já haviam se passados exatos 10 dias. Havana, depois Santa Clara, Cienfuegos e agora novamente Santa Clara, uma cidade que nos encantou, pela hospitalidade. Interiorana, cheia da magia que tínhamos certeza nos envolveria, a cada novo contato com a cidade e sua gente, aquele gostinho de sempre querer mais.

Nessa segunda gostaríamos de estar às 8h na porta da escola Hurtado Mendoza, há pouco mais de uns 300 metros do hotel, vendo as crianças, denominadas de “pioneiras”, reverenciando o país antes de adentrarem para as aulas e fazendo a famosa saudação a Che Guevara. A rotina é a mesma, o celular do Marcos desperta 5h45, porém nesse dia não conseguimos levantar antes das 7h. Foi uma correria, pois não podíamos nos atrasar, do contrário perderíamos o que queríamos presenciar. Não deu outra, chegamos atrasados e perdemos a emocionante cena das crianças cantando, como fazem todos os dias ao adentrarem as salas de aula. O diretor da escola Ramón Palleiro, de apenas 35 anos, já há 13 anos dirigindo a escola, nesse momento com 400 crianças, nos fala em particular. “Aqui na escola não existe atividade monótona, ocorre uma variação constante, intercalando sala de aula, educação física, biblioteca, informática e passeios variados. Todos sabem que o “nino” aprende mais rápido. Entra na escola como se fosse um material bruto, sem nada saber e aqui o encaminhamos para a vida. Essa escola foi fundada em 1854, há mais de 100 anos por um padre, que leva o nome da instituição. Sempre foi pública. Aqui os ninos nos respeitam muito. Os professores, funcionários, somos vistos como maestros em sua formação. O trabalho do educador também se dá fora da escola, no acompanhamento junto à família. Atacamos a causa do problema, quando ele existe junto à família, vamos até lá imediatamente.”, inicia seu relato.

“Cada grupo reunido numa sala tem no máximo 20 alunos. Se em algumas salas dobram essa quantidade de alunos, duas mestras estarão por lá. Existe dois tipos de escola. Essa é do tipo urbana, eles vão almoçar em casa e voltam à tarde. Outras servem merenda. Cada município possui sua micro-universidade, que é a formação de uma classe ideológica, intelectual. Após a revolução, muitos desses se foram e tivemos que formá-los desde o início, num processo que não cessa nunca. Em escola pública tem que ter consenso, regras e toda nossa educação é unificada, uniforme para todo país”, continua seu relato. Presenciamos isso no sábado, quando vimos a presença de universitários na escola.

“Os Estados Unidos é um país onde quando não se tem dinheiro no bolso, eles se sentem mal. São basicamente consumistas. Só chegamos a algum lugar com participação coletiva, desinteressada dos interesses econômicos. Trabalhar com uma criança é sempre muito mais gratificante, pois o aprendizado vai aparecendo mais rapidamente que no caso do adulto. O cubano não esconde seus problemas. Ele tenta resolvê-los atacando a base dos mesmos”, continua seu relato o diretor Ramón. Ele continua nos relatando dos problemas sociais (“existentes em todos os países”), como desvios de conduta, fumo e álcool em excesso. As famílias são contatadas no ambiente escolar e familiar e algo que não acontece e o delas ficarem sem escola. Impossível isso por lá.
Percebemos que o prédio, a edificação pode não estar bonita, porém, o seu no interior nada falta. O lema por lá é “tudo aos ninos”. Um aluno vem respeitosamente pedir ao diretor se pode ir falar com sua mãe que o aguarda na entrada. O diretor concorda e ele sai correndo. O diretor fala: “Sem correr, sem correr”. Ele diminui a marcha imediatamente. Não observo isso como algo ditatorial e sim, de respeito aos superiores, algo que observei por lá em todos os escalões. Uma breve despedida e marcamos para o dia seguinte às 7h40, onde assistiremos o perfilamento dos alunos na entrada. De lá o retorno ao hotel e um café da manhã daqueles com omelete, macarrão quente, pães, queijo, suco, leite, café, maionese e arroz doce. É sempre nossa maior refeição diária. Sigo com minha canela doendo. Tenho andado muito e faço compressas de água quente. Na janela do hotel uma chapa de Raio X com um dedo em riste, para nós um sinal de “vai tomar ...”. Nem imaginamos como foi parar ali. Fotografo tudo isso e muito mais. A seguir voltamos para as ruas e vamos conhecer a imensa universidade da cidade.

sábado, 30 de maio de 2009

COLUNA NO JORNAL BOM DIA (22 E 23) e ALFINETADAS (54)

O NOME NA PLACA - Texto publicado no BOM DIA e n'O ALFINETE, edições de 23/05
Cantarolo até hoje uma das canções mais engajadas de Eduardo Dusek: “Troque seu cachorro por uma criança pobre”. Tem muita gente que cantou isso sem entender direito, deu até risada, como se engraçada fosse a situação. Aquele trecho merecia uma campanha de sensibilização do entendimento de nossa pobreza, não só real como principalmente cultural. Se aquela não deu certo naquela oportunidade, queria lançar outra aqui, diante de um fato inusitado na política brasileira. Na incessante luta pelo aprofundamento da democracia brasileira, a Câmara de Vereadores de São Carlos por unanimidade aprovou um Projeto de lei alterando o nome da Rua Sérgio Paranhos Fleury, denominando-a agora de D. Hélder Câmara. Retira-se o nome do delegado torturador e no seu lugar, o nome de um símbolo da paz e da justiça social. Vibrei em êxtase. Seria muito mais emocionante se isso sensibilizasse também os vereadores de Bauru e de outras cidades para fazerem o mesmo. O caso mais gritante de Bauru é o do bairro Geisel, em homenagem ao ditador presidente. Conheço quem tem muita vergonha de morar lá, tudo por causa do nome do bairro. Depois poderia vir às homenagens feitas aos presidentes norte-americanos Kennedy e Roosevelt. Nem tudo que é ruim deve ser eternizado. Sempre é tempo de reparar erros cometidos no passado. Em São Paulo, a ex-prefeita Marta Suplicy fez o contrário, tirou um nome de Av . Águas Espraiadas, denominando-a Jornalista Roberto Marinho. Num ato de protesto, alguns manifestantes foram lá e cobriram o nome dado, substituido-o por Jornalista Vladimir Herzog. Também achei muito mais adequado, mas infelizmente era só uma manifestação. Para tudo nessa vida se faz necessário uma boa dose de coragem. E já que não iremos mesmo trocar nosso cão por uma criança pobre (mesmo figurativa, uma campanha dessas sensibilizaria, ou não?), que ao menos tenhamos coragem para retirar de algumas placas, homenagens a quem delas não façam jus.
HPA, professor de História, 48 anos e procurando emoções fortes, como Bruce Lee, quando enfrentava, sózinho, cinco indignados adversários.


O MEDO DO MEDO QUE DÁ - Texto publicado no BOM DIA e n'O ALFINETE, edição de 30/0
Semana passada fomos agraciados com mais uma manifestação medrosa da atriz Regina Duarte. Anos atrás havia manifestado seu medo quando da eleição de Lula para a presidência, hoje volta à carga. Lá atrás, eleitora de FHC, dizia temer o sapo barbudo. Na verdade se borrava toda é com a mínima possibilidade de algum tipo de mudança, das do tipo que os menos favorecidos começassem a encurralar a elite política, exigindo o seu quinhão de benesses e direitos não respeitados. Passado o tempo, seu medo se mostrou infrutífero e inconseqüente. Lula errou bastante, deixou a desejar, mas acertou infinitamente mais do que FHC, que entregou para o petista um país quebrado e sem credibilidade nenhuma. Situação bem diferente da que Lula entregará o poder. Vivemos nesse momento outra situação e só de pensar num retrocesso bato na madeira, toc toc toc. A atriz, que possui laços latifundiários, hoje investe contra os índios. Um medo de quem possui algo a perder. Ou seria a temer? A situação latifundiária brasileira é algo a ser ainda resolvida e a dos índios, os primeiros habitantes e donos naturais de nosso território, não deveria nem sequer ser discutida. Pior que tudo isso é ir verificando, beirando o cômico, moradores de grandes cidades que não possuem um milímetro de terra ter tanto horror ao movimento dos sem-terra e a uma solução para o problema fundiário. Vê-los tomando posição ao lado de quem grilou e usurpa dos poderes que possui é algo para se lamentar. Regina faz parte de um país que não quer avançar, tem medo de dar passos nesse sentido. Nesses momentos sinto muita saudade da ousadia, já não existente hoje em dia de atrizes como Leila Diniz, uma mulher deliciosamente imperfeita, mas cheia de uma vitalidade, pronta para mudar e enfrentar novos desafios. Aberta para o mundo e não fechada para seus interesses. A maioria artística de hoje somente está voltada para seus interesses. O Brasil que Regina defende é o Brasil de uns poucos privilegiados, bem distante do Brasil que vejo daqui de minha janela., necessitando (e clamando) por profundas mudanças.
Henrique Perazzi de Aquino, 48 anos, seguidor de uma frase de Noel Rosa: “Palmeira do mangue não vive na areia de Copacabana”.

Em tempo: Extrai do livro, "Leila Diniz - Perfis Brasileiros", de Joaquim Ferreira dos Santos uma frase fatal sobre nossos medos, que servem tanto para a mudança do nome do bairro, como para o caso do da atriz Regina Duarte. Disse Leila, a sem medo: "Tô chegando a conclusão de que a pior peste da humanidade é o medo. Puta que pariu, como a gente tem medo. Do futuro, do presente, do passado. De gente, de sofrer, de amar, de viver. Porra!" (extraído do seu diário pessoal, início de 1972).

sexta-feira, 29 de maio de 2009

RETRATOS DE BAURU (58)

NORBA MOTTA, O REI DAS CORDAS
Não me entendam mal. Esse negócio de "cordas" não tem nada a ver com boxe. O negócio de Norba são as cordas de um violão, sua especialidade e advém daí sua realeza. Não me perguntem de onde ele veio, onde mora, com quem, nada disso eu sei. O que vale mesmo é que já tocou com todos os músicos de Bauru e região, pelo menos os que não estejam encolvidos com o tal "desgosto cultural". Norba nutre o bom gosto e toca que é barbaridade. Isso é o que vale saber. Sempre está meio que envolvido nos projetos diferenciados de música espalhados pela cidade. Marca presença de forma decisiva e incisiva. Um cinquentão de bem com a vida, pertencente a uma nata que faz e acontece com o instrumento na mão. Consegue algo um tanto raro por essas plagas: sobrevive da música e para a música. Que Norba é um músico completo isso já foi cantado em prosa e verso, que é o músico preferido da grande maioria dos cantores e cantoras da noite também, tanto que nesse novo projeto, o de reviver o show do Opinião, lá está ele a encabeçar e dirigir a parte musical. Escrever sobre sua pessoa e seu profissionalismo é chover no molhado. Vejam as fotos, sintam o clima e saberão do que estou a falar.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

CENA BAURUENSE (30)

REMONTAGEM DO "SHOW OPINIÃO", de 1964, EM BAURU
Algo a ser reverenciado com grande barulho por esses dias é a remontagem que ocorre aqui em Bauru do famoso show "Opinião", encenado inicialmente em 1964, talvez nosso primeiro musical genuinamente brasileiro. Quem não se lembra daquele encontro fantástico, aonde Zé Ketti representava o malandro do morro, João do Vale o retirante nordestino e Nara Leão a burguesa da alta sociedade? O espetáculo foi um dos grandes momentos da nossa MPB, idealizado por Oduvaldo Viana Filho e Paulo Pontes, sob a direção de Augusto Boal. O texto intercalava texto e música e mostrava a mocinha fina no meio dos homens "brutos" do morro carioca e do sertão nordestino. Depois Nara foi substituída por Maria Bethânia e anos depois, em 1975 o show foi remontado sob a direção de Bibi Ferreira. Foi algo que marcou época e as músicas continuam na boca do povo até hoje. São eternos sucessos. Sivaldo é o grande culpado por tudo isso ser revivido em Bauru. Há mais de um ano retirou do fundo da gaveta o antigo texto e após idas e vindas, consegue reunir um time de primeira grandeza. Tem tudo para dar certo, todos batem um bolão.

O diretor da remontagem em Bauru é SIVALDO CAMARGO, conseguindo o aval do sempre atuante, FERNANDO, do Templo (onde acontecerá as primeiras apresentações). Já ocorreram quatro ensaios, toda segunda (faltam três para o dia da festa, 22/06, segunda, com aproximadamente 150 lugares). Presenciei o primeiro e o quarto ensaio. Vivi intensamente a preparação dos artistas bauruenses, que empolgados suam a camisa para decorar as passagens de textos e a marcação das músicas. Querem saber o nome das feras envolvidas? Lá vai, em primeiro lugar, o próprio SIVALDO, que além de dirigir, atua como ator, na apresentação dos textos. Três cantoras do primeiro time da noite bauruense: REGINA MANCEBO, AUDREN VICTORIO e DENISE AMARAL. Uma melhor que a outra e empolgadíssimas, acabam por se completarem. Escolhidas à dedo, cantam e encantam. Fui nos ensaios para ir registrando tudo com fotos e ficava embasbacado vendo a atuação delas, me esquecendo de clicar a maquininha. Junto delas a voz do malandro, ou fazendo as vezes de um, o JOÃO PAULO, cronner do Monte de Bossa. Vozeirão danado de bom, fica maluco no meio das três feras e dos músicos, todos eles experientes. NORBA MOTA (esse dispensa apresentações), comanda a trupe instrumental, tendo ao seu lado, MARQUINHO BELINAZZI no baixo e TONINHO, na bateria, trazendo a experiência acumulada nas muitas bandas onde já atuou.

Com uma composição dessas o espetáculo tem tudo para dar certo. Devem ser disputadíssimas as poucas vagas lá no Templo. Inicialmente serão duas apresentações. Pelas fotos publicadas aqui dá para ter uma "palhinha" do que está vindo por aí. Sivaldo já começa a articular as apresentações pela região, talvez no circuito SESC e viagens variadas. Isso aqui hoje é só para dar água na boca. Volto ao tema com mais fotos e muito mais.
Em tempo: As cinco primeiras fotos, as boas, são da fotógrafa PRISCILA, as demais, meio que embaçadas, são de minha autoria. Tinha motivos para tanto, fiquei trêmulo de emoção.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

DROPS - HISTÓRIAS REALMENTE ACONTECIDAS (08)

UM INESPERADO ENCONTRO EM DOIS CÓRREGOS
Hoje, 12h, adentro um restaurante em Dois Córregos. Na parte central uma pessoa chama a atenção. Negro, carapinha bem branca, igual a barba, um ar conhecido. Não deu outra, era VADO, o famoso ator mambembe, que apresenta por esse mundão afora a poesia de Castro Alves, "O Navio Negreiro". Fiquei meio assim de me aproximar, mas o fiz, pois da última vez que assisti a peça/monólogo, deve fazer bem de uns 15 a 20 anos. Vado é a simpatia em pessoa e almoçamos juntos. Reside em Campinas, seu porto seguro e de lá sai toda semana para um lugar diferente. Faz tudo sózinho, ele numa velha Caravan, onde armazena o necessário para as apresentações. Continua o mesmo dantes, um artista solo, vendendo o seu peixe de uma maneira das mais corajosas e ousadas. Sabe das dificuldades de vender o espetáculo nas cidades, a burocracia, morosidade, tanto que se oferece pela bilheteria. Quer o pouso e a alimentação, no restante se vira ao seu modo. Sabe como fazer e com a ajuda da Prefeitura local visita as escolas e oferece em cada uma delas o seu evento. No mínimo lota dois espetáculos só com estudantes e faz outro para o público em geral. Tem um produto bom na mão e oferece sua arte, com 35 anos de estrada, sem riscos financeiros, a não ser para ele próprio. Convence todos e os locais de apresentação estão sempre cheios. Vê-lo fazendo isso aos 61 anos, sendo o espetáculo em cartaz a mais tempo na América Latina e o segundo no mundo, sendo superado só por um chinês (tão ousado como ele). Está a caminho do Guiness Book. Me espanta sua agilidade e lhe pergunto sobre auxiliares, o som, iluminação, essas coisas. Ri e me diz: "Viajei por tudo quanto é lado é uma vez na América Central, encontro com um mágico italiano, na estrada como eu, que traz consigo um aparato, onde ele faz tudo sózinho, apertando botões e acionando luzes, fumaça e som. Ele me emprestou para um evento por lá, tirei fotos e fiz um com a adaptação para o que preciso. Faço tudo. Com a bengala, aciono botões e movimento tudo. O público, percebendo isso, aplaude ainda mais". É único no que faz. Digo de Bauru e ele lembra em detalhes das apresentações no Prevê, no Teatro Edson Celulari, antigo Cine Rex e de entrevista na TV (Nádia, ele lembra até do seu nome). Acha uma foto num álbum e me diz: "Essa eu tirei em Bauru, no teatro do Prevê". De Cuba, uma recordação em especial: "De todas as apresentações foi uma das que me mais me preparei. Sabia o público que iria encontrar, um dos mais cultos da América, gente inteligente, com conhecimento de causa, que frequenta teatro. Percorri a ilha e já faço planos de voltar. Aprimoro meu espanhol". Do Brasil, cada cidade uma aventura diferente, uma expectativa e gente a lhe reconhecer. Ainda no restaurante, aproxima-se uma senhora, responsável pelo projeto de poesia espalhado pela cidade de Dois Córregos. Faz oferta para Vado voltar à cidade no Festival de Poesia, no Inverno. A cidade respira poesia. Até no restaurante estão espalhadas e no restante da cidadem muita poesia pelos muros. De lá, vamos ao cinema/teatro da cidade, onde estará se apresentando na quinta e sexta. Antes de ir mato outra curiosidade, sobre o seu record diário de apresentações: "Já cheguei a fazer quatro num dia. Hoje não faço mais, não passo de cinco na semana e isso para não cair a qualidade do espetáculo. O texto e a encenação da poesia de Castro Alves é desgastante e envolvente. Um poeta que previu um dia um negro no poder, um libertário". Vado continua na estrada, aos 61 anos, 35 anos com a mesma peça, com a cara e a coragem. Diante de tantos espetáculos dantescos, vê-lo exercendo esse papel de ator andarilho/mambembe é para se emocionar. É único e uma incrível figura humana.

terça-feira, 26 de maio de 2009

UMA FRASE (36)

MARIO BENEDETTI (1920/2009)
Adoro reproduzir aqui textos dos grandes dessa "América Latíndia (que um dia já foi chamada de Latrina)", essa que fala espanhol, algo, infelizmente tão distante de nós brasileiros. Por esses dias faleceu um desses imortais. Mario Benedetti seu nome, uruguaio de nascimento, poeta de nosso inconformismo. Um dos mais importantes escritores uruguaios da atualidade, Mario Benedetti nasceu em 14 de setembro de 1920. Trabalhou como vendedor, taquígrafo, contador, funcionário público e jornalista. Entre 1938 e 1945, morou em Buenos Aires. Ao retornar a Montevidéu, passou a trabalhar no semanário Marcha. Nesse mesmo ano, publicou o primeiro livro de poesias, La víspera indeleble. Nos anos seguintes, Benedetti lançaria a primeira coletânea de ensaios, Peripecia y novela (1948), a primeira de contos, Esta mañana (1949), e o primeiro romance, Quién de nosotros (1953). Em 1959, com a publicação do livro de contos Montevideanos, consagrou-se como escritor. E, no ano seguinte, o lançamento de A Trégua lhe rendeu fama internacional. Por questões políticas, abandonou o Uruguai em 1973. Nos 12 anos de exílio morou na Argentina, Peru, Cuba e Espanha. O escritor faleceu em 17 de maio e deixa atrás de si uma rica obra, na qual os mais de 80 romances, ensaios, contos e poemas escritos mostram o compromisso social e a coerência de alguém que acreditou "na vida e no amor, na ética e em todas essas coisas tão fora de moda".

Aqui um poema de Benedetti foi escrito para um canalha - Ronald Reagan - mas parece ter sido feito sob medida para o ditador Augusto Pinochet: "À MORTE DE UM CANALHA"
Os canalhas vivem muito, mas algum dia morrem.
'OBITUÁRIO COM 'HIP-URRAS'
Vamos festejá-lo/ venham todos os inocentes/ os lesados/ os que gritam à noite/ os que sonham de dia/ os que sofrem no corpo/ os que alojam fantasmas/ os que pisam descalços/ os que blasfemam e ardem/ os pobres congelados/ os que amam alguém/ os que nunca se esquecem/ vamos festejá-lo/ venham todos/ o crápula morreu/ acabou-se a alma negra/ o ladrão/ o suíno/ acabou-se para sempre/ 'hip-hurra'/ que venham todos/ vamos festejá-lo e não-dizer/ a morte sempre apaga tudo/ a tudo purifica/ qualquer dia a morte não apaga nada/ ficam sempre as cicatrizes/ 'hip-hurra'/ morreu o cretino/ vamos festejá-lo/ e não-chorar/ por vício que chorem seus iguais/ e que engulam suas lágrimas/ acabou-se/ o monstro prócere acabou-se para sempre/ vamos festejá-lo/ a não-ficarmos tíbios/ a não-acreditar que este é um morto qualquer/ vamos festejá-lo e não-ficarmos frouxos/ e não-esquecer que este é um morto de merda.

Ouví-lo é mais intrigante ainda. Eu me refestelo com isso. Um deleite para esse corpo cansado. Nesses momentos quem sempre me salva é o Youtube:

segunda-feira, 25 de maio de 2009

MEMÓRIA ORAL (66)

UM SAPATEIRO RESISTINDO AO TEMPO
Antonio Scarton, 81 anos, desde os dez anos exerce, sem interrupções uma profissão daquelas meio que em extinção. Ele é ciente de que a luta está perdida, mas não muda de lado. Sapateiro, com um pequeno estabelecimento, aberto de segunda à sexta, no horário comercial e aos sábados, no período da manhã, localizado a uns 100 metros da antiga estação ferroviária central de Bauru, lugar de antiga e saudosa efervescência no centro da cidade, resiste como pode, numa pequena portinha, acanhada e descascada, na Rua Alfredo Ruiz, 2-14, num local onde dantes funcionou ao seu lado, hotel, bares e outros pontos comerciais. Hoje só ele e até quando puder, ou resistir.

“O vizinho do meu lado, seu Nenê, alfaiate, permaneceu na porta do lado por 35 anos. Disse que ia parar e o fez. Não agüentou. Nem sei se costura mais”, me disse sobre o isolamento atual. Durante 22 anos manteve seu negócio embaixo do hoje fechado Hotel Milanezi. “Veja lá”, me diz apontando para o lado do hotel, “hoje tudo está fechado, tudo quebrado e abandonado, igual nossa estação. Circulava muita gente por aqui e hoje esse abandono”, continua me relatando. Quando o hotel fechou, tentou permanecer no antigo local, mas foi obrigado a procurar aluguel mais barato, vindo para o endereço atual, onde permanece por 14 anos.

A região central, ao lado da antiga estação feneceu com a privatização da ferrovia e o fechamento da estação. Tudo ali tem aspecto de estagnação e o aspecto não é dos mais agradáveis. Ele, que desde os dez anos exerce a mesma profissão, nunca abandonou a região e continua resistindo. “Pago R$ 200 reais de aluguel, sei que o prédio onde estou está se acabando, mas não posso fazer nada. Tudo está fechado do meu lado, só esse posto aí na frente ainda resiste, o Hotel Cariane, que tenta se manter aberto e a loja de móveis usados”, fala sobre o momento atual. Quando lhe pergunto se consegue obter algum lucro, diz que sim, mas pouco. “Se parar vou fazer o que. Não sei fazer outra coisa e não conseguiria ficar em casa sem fazer nada. Enquanto puder fico e quando não der mais, continuarei atendendo meus clientes em casa. Tiro alguma coisa porque faço de tudo”, conclui.

Antigamente vinha trabalhar de carro, uma Brasília. Foi obrigado a vendê-la por motivo de saúde e passou a vir a pé, numa distância de aproximadamente uns 3 km. Já não consegue mais fazer o percurso caminhando. Hoje o faz de ônibus, pois pela idade já não paga mais passagem. “Já tive uma pequena fábrica, fazia botas e bolsas, Hoje só conserto, reparos em sapatos e nas bolsas. O sapato masculino é o que me dá mais retorno, mas a maioria é tudo descartável. Pagam baratinho e depois jogam fora”, me diz enquanto segue cortando uma borracha de câmara de automóvel, transformando-a em sola para uma botina. E sobre seu local de trabalho é simples e direto: "Isso aqui é uma santa bagunça. Parece tudo fora de lugar, mas eu sei onde encontrar cada coisinha. Tudo tem um lugar".

Revolta mesmo só quando pergunto sobre se não conseguiu ensinar ninguém. “Tenho dois filhos, um casal. Ele até ficou aqui comigo um tempo, depois aconselhei a estudar, porque isso aqui está parando. Ele fez tecnologia e toca sua vida. Imagina nós dois aqui hoje? Seria um desastre”, me diz resoluto. “Ensinar eu não ensino mais ninguém. Apareceu um aqui e me convenceu a fazer isso. Fiz e quando acabei de ensinar tudo, me levou na Justiça do Trabalho. Paguei uma fortuna, mas o mal que me fez, pagou aqui mesmo, pois sei que não se deu bem no ramo”, diz meio entristecido.

Scarton é um nome de origem italiana, da região de Verona. “Veja esse postal. Quem me enviou foi uma cliente que mora na Itália, dona Norma. Ela vem algumas vezes por ano ao Brasil e me traz sapatos de lá para consertar. Pegou meu endereço e recebi essa foto. Quando passou aqui no começo desse ano me explicou sobre o castelo e essa ponte medieval”, conta segurando o postal. Sobre a família diz rindo que outro dia ligaram para sua casa procurando pelo senhor Antonio: “Minha neta disse que não morava ninguém por lá com esse nome. Era eu, mas lá em casa ninguém me conhece pelo primeiro nome. É só Scarton, isso desde meus tempos de moleque, do tempo em joguei na várzea”.

Atende dois clientes durante o tempo em que ali permaneci. No primeiro, um reparo simples, para colar um bico de sapato aberto. Combina o preço por R$ 5 reais e promete o serviço para dois dias. Uma mulher lhe traz uma bolsa com a alça descosturada. Faz na hora e cobra os mesmos R$ 5 reais. “Aposentei com dois salários. Na época do Collor me tiraram um. Hoje tenho só um. Tenho que trabalhar para completar um ganho pouco melhor”, me diz enquanto costura a bolsa da cliente. Essa é a rotina desse filho de italiano, ciente de que exerce uma profissão que não terá solução de continuidade, pelo menos no seu caso. Nem por isso, demonstra menos disposição daquela de 69 anos atrás, quando tudo começou.