Mafuá do HPA

MEMÓRIA ORAL (65)

O ÚLTIMO DOS MOICANOS (ops, digo, DOS COMUNISTAS)

Que os comunistas de hoje já não professam a ideologia como antes, isso é do conhecimento até do reino mineral, tanto que aqui na região, em duas ocasiões, a atuação dos ditos comunistas causa espanto. Em Botucatu aliaram-se ao PSDB, os tucanos, idealizadores e propagadores do neoliberalismo, tudo para terem um vice-prefeito eleito. Um acordo político bem distante do que se entende por comunismo. Na Barra Bonita, um padre não conseguindo legenda para se eleger, adentra o partido e por quatro anos transforma-se no padre comunista. Na reeleição perde e volta para a sacristia. Esses dois exemplos podem ser considerados “fichinha” perto de outras barbaridades ideológicas tão em voga nos tempos atuais. O fato é que o comunista, aquele dito de carteirinha parece agir, em sua maioria, no sentido oposto do que prega a ideologia. Fazem parte de um partido e assim sendo, agem conforme as regras existentes.

“Uma aberração essa perda da ideologia”, é o que ouço de um jovem, 30 anos, sem militância político-partidária, mas se dizendo um autêntico comunista, de direito e de fato. Marcos Paulo Rezende não possui muitos contatos com os "comunistas" de então, preferindo atuar isoladamente com seu grupo do que se render a hipocrisia, pois segundo ele mesmo, “o comunismo não é praticado dentro das legendas que levantam a bandeira da foice e do martelo. Uma coisa é organizar um movimento revolucionário como o 26 de Julho, outra é organizar legendas para disputar eleições nessa caricatura de república, dando espaço ao peleguismo e negociatas. Eu só cheguei a acreditar que esses partidos tinham comunistas na minha adoslecência". Olhando para o que é hoje o PPS e até o PC do B, não existe como não concordar. Diz também que o "ser comunista é a evolução do ser humano, o homem novo como se referiu Che. É preciso primeiro passar por uma revolução e libertação pessoal antes de se dizer comunista e buscar uma revolução. Qualquer um pode se dizer comunista, mas "ser" são para poucos". Marcos é muito conhecido em Bauru, pois só usa camisetas vermelhas com estampas da foice & martelo, Lênin, Che e outros símbolos da resistência comunista. Mesmo adorando futebol (é são-paulino – ninguém é tão perfeito assim), não se sente mais a vontade para envergar a camisa do seu time, pois segundo ele, “o futebol virou um negócio como tantas outras formas de arte engolidas pelo capitalismo e disso estou fora”.

Fui até sua casa conhecer um pouco do seu acervo pessoal. Recebe-me acompanhado do gato Molotov. “Lá no fundo está o Stalin, meu cachorro e a outra gata, Joana D’Arc”. Busca uma coleção de preciosidades, tais como uma medalha soviética, dada por Stalin a todos aqueles que prestaram serviço à URSS após a vitória na Segunda Guerra Mundial. “Comprei na capital, de um colecionador de artigos militares da URSS. Ele havia morado lá e possui verdadeiras raridades. Paguei caro, mas valeu a pena”, me diz. Possui quase todos os livros editados com os discursos de Fidel Castro. “Um pertenceu ao pai de um conhecido, torturado em 64. Na dedicatória, feita em 1969 está escrito: ‘Aceite esse livro como presente pela luta revolucionária no Brasil’. Isso é que está em falta hoje, não temos mais isso, ninguém mais luta, a não ser por interesse próprio, fazem acordos para tudo”, continua me dizendo.

Da geração anos 80, refere-se a ela como a última década de lutas. Lembra da importância que teve em sua formação, pois conta que nos anos 80, ainda sob os ecos dos anos 60 (do que ficou conhecido como contra-cultura), muita coisa chegavam aos ouvidos de muitos jovens da época, "o mundo ainda era bipolar, o marxismo fluia e viviamos em intensos debates e conflitos ideológicos, tinhamos muitas referências e lideranças para nos espelharmos". Amante da arte, agradece a saudosa Discoteca de Bauru por ter lhe colocado no caminho da arte que liberta a mente, amante do puro Rock n' Roll, o preferido dentro do segmento são os Beatles, principalmente John Lennon, “um comunista assumido”, conforme me explica. Mantém no plástico, para não perder a tinta, um jornal de Liverpool, datado de 09/12/1980, dia seguinte da morte de Lennon. “Esse comprei em Liverpool, de um colecionador, paguei uma nota e guardo com muito carinho”, conta. Na seqüência outro documento no plástico, uma cópia autenticada da certidão de nascimento de nada menos que Ernesto Che Guevara, de 15/06/1928. “Muito interessante as testemunhas. O chofer do pai do Che, José Beltran, então com 30 anos, solteiro, um brasileiro, foi testemunha no cartório. Um conhecido militante de esquerda argentino, próximo a Rosário me enviou de surpresa. Para mim é uma relíquia”, me relata.

Marcos não resume seu acervo às relíquias comunistas e revolucionárias, mas também às histórias. “Em 2004, teve que entregar uma carcaça de um fuzil AK-47, pois alegaram que poderia ser usado por alguém um dia para enganar. Era só uma carcaça. E não criei problemas”, diz. No entorno de sua casa conhece muita gente e um desses foi Tom, um músico da antiga e falecido a pouco tempo. “Morava aqui perto. Conheci-o velho, já aposentado da noite. Conversávamos num bar aqui perto e me disse certa vez que sua juventude foi sexo, drogas e rock’n roll. Primeiro parou com as drogas por causa da saúde, depois o sexo pela idade, mas o rock nunca pararia. Sem grana aceitou tocar numa igreja evangélica. Foi claro, disse que iria para ganhar algum e não para ser convertido. Logo de cara, com uma pegada forte de rock na bateria os fiéis começaram a dançar twist ao invés de bater palmas. O pastor mandou embora rapidinho”, relata. Marcos é tocado por histórias como essa, tem centenas, parece ter uma vivência de veterano apesar da idade. Conta várias, todas de tipos populares, sem espaço e na grande maioria, vivendo à margem da sociedade. Outra coisa que o toca muito é a música, sendo sua escola o blues, o jazz e o sempre presente rock’n roll, mas não deixando de apreciar a MPB e a música erudita que diz ser fundamental para qualquer apreciador da arte musical, "lembre do Zappa, ele não demonstrava, mas tinha um grande conhecimento de música erudita, daí as pérolas criadas nas suas composições".

Falar de Fidel é vê-lo crescer (se já não fosse grande). Nesses momentos se infla, fica tomado de um poder diferente, emana um astral de que o mundo possui uma saída e a cubana é um exemplo a ser perpetuado. “Não agüento essa discussão que é feita sobre liberdade. O direito de ir e vir sempre foi relativo como todas as outras coisas. Você não quer ir para Paris? E por que não vai? Falta dinheiro". Sobre o tão criticado ("de forma cinica e hipócrita pelos inimigos") paredón, diz: "o regime comandado por Fidel mandou matar sim, mas poderia ter feito até mais. FDP só prejudica o mundo. Quantas baratas você já matou? Canalhas são tão ruins e insignificantes como as baratas. Mato assim”, me conta esfregando os pés no chão, como se matando baratas. “Eu não escondo o que sou e como penso. Digo em todos os lugares que sou comunista, me mostro assim, não faço concessões para agradar ninguém. Veja nosso melhor vereador, um comunista. Ele não diz isso abertamente nas entrevistas. Só o faz internamente, em reuniões, mas não em entrevistas, talvez porque a palavra comunista seja muito impopular hoje”, conclui. Também não concorda com as críticas feitas ao presidente Lula: "Ele nesse sistema nunca irá conseguir implantar as mudanças que queríamos. Temos que entender isso".

Quando o tema resvala em futebol é categórico. “Perdi o entusiasmo pelo futebol brasileiro. Tudo na mão de empresários e um futebol medíocre, sem fundamentos, paixão e a essência da arte. Assisto muito a jogos do campeonato inglês, o único com resquícios do antigo futebol arte, bem jogado e trabalhado. Nesses momentos vejo só a arte. Se for tocar na parte política, não assistiria mais nada. Ou melhor, existe sim alguém diferenciado no futebol, é a ESPN dirigida por José Trajano. Ele é o que de melhor temos na imprensa brasileira. Ele fez o seu emprego. A ESPN é uma franquia da Disney. Ele paga a mensalidade, contratou gente da melhor espécie e prova que nem tudo é porcaria na TV brasileira. Defende o que eu defendo diante dos microfones. Não tem nada igual na nossa medíocre imprensa”, conta de forma entusiasmada.

Sua vida se passa do trabalho na sua loja de games, a TV para assistir a ESPN e os filmes europeus que tanto ama. Gosta de escrever textos críticos e reflexivos, além de contos e sonetos, todos na madrugada, que usa para a leitura, da qual não abre mão. Diz que o melhor horário para a leitura é ao cair da noite, mesmo tendo que levanter cedo. Intercala ainda, os exercícios físicos, as caminhadas e bate-papos com os amigos pelas ruas da cidade e umas viagens em busca do revigoramento ideológico e cultural. Teve equipamentos roubados recentemente de sua loja e o seguro não o indenizou. Sobre isso desabafa: "O corretor me causou maior prejuízo do que o ladrão, pois esse não possui formação. O corretor as tem e armou uma arapuca para mim. Para manter a ordem, se faz necessário a punição da cria e do criador". No campo sentimental só aceita manter um relacionamento com alguém, se essa pessoa pensar e agir da mesma forma que ele, do contrário, nem pensar. No político, cada vez menos contatos, pois, para ele, o “jogo político é mesquinho, só interesses, negociatas. Dia desses, me encontro com um petista, que combateu o atual Diretório do partido e hoje, circula ao lado de quem criticava. Veio ao meu encontro de braços abertos. Recuei e disse que não aceitava o que estava fazendo. Tudo aquilo que falava já não tinha mais sentido. Estava igualzinho aos que criticava. Não tem como fazer acordo e estabelecer diálogo com a parte contrária”. Como comunista, é ateu e crítico feroz dos dogmas religiosos, também não gosta dos discursos de ecologistas, ambientalistas.

Meu contato nesses dias não se limitou a essa ida até sua casa. Fomos juntos ao show do trombonista Raul de Souza, no SESC de Bauru. Ele me ligou perguntando se iria. “Um monstro sagrado desses não poderia perder. A boa música está resumida nessas pessoas”, me diz. Fomos juntos com Hilda Tolon e Viviane Serra, cubanas residentes em Bauru, que torturaram Marcos tomando uma Coca-Cola, um refrigerante que ele aboliu de sua vida (ele também não bebe álcool, lá foi de suco de uva). Ele também adora conversar por telefone suas insatisfações (que também são as minhas) sobre os desvios do mundo atual e a falta de perspectiva. Faz tudo em longas ligações, de meia-hora para cima, num discurso prolongado e doloroso. O vejo sofrendo nesses momentos, querendo mudar o mundo e sem uma saída possível. “Eu sei que o mundo não vai ser comunista nunca e por causa disso tenho que defender com unhas e dentes as experiências existentes. Na guerra estamos sujeitos a perdas. Se o mundo ainda têm comunistas, cadê a revolução? Só na luta pela revolução voce se transforma. Sabe qual meu projeto atual? Vou juntar uma grana no trabalho, e no máximo nuns dez anos, me aposento daqui, do país capitalista, depois quero passar em todos os lugares do mundo onde de alguma forma existiu ligação com alguma revolução, indo viver depois num paraíso comunista. Cuba é o destino, irei me dedicar a literatura, escrever um livro de sonetos e contos e um ensaio filosófico sobre o comunismo, depois dar o último suspiro da vida na ilha do Comandante”, conclui. E nesse caminho, segue sua vida, cada vez mais único, isolado, sem comunistas verdadeiros a pensarem como ele, um verdadeiro moicano (ou seria um Don Quixote diante dos moinhos de vento?) diante de um mundo pensando e agindo cada vez mais no sentido oposto.

Em tempo: Nas duas primeiras fotos, com uma autêntica bandeira soviética, presente do ex-prefeito Tuga Angerami, entregue a mim e repassada ao Marcos na visita feita à sua casa. A última foto, publicada aqui a pedido dele, feita por mim em Havana, Cuba, março de 2008, na sede a UJC - União de Jovens Comunistas, ao lado de uma foto de Fidel e o gesto revolucionário que tanto gosta de exercitar. "Um gesto que resume bem o que vem a ser a luta", me diz na solicitação.