sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

MEMÓRIA ORAL (171)


O OURIVES DA HISTÓRIA POTIGUAR – O DONO DO PEQUENO SEBO JÁ EDITOU MAIS DE 400 TÍTULOS

 
No centro velho de Natal RN onde se vê nas placas a inscrição “livraria”, ali papelarias. Livrarias não mais existem nas ruas da cidade. Persistem os sebos, em número de aproximadamente quinze espalhados pelas suas principais artérias. Na avenida Rio Branco alguns deles. Entro num deles, encontrado em andanças pela região, obra de puro acaso e por causa de um diálogo ouvido quando ainda na calçada, parado observado livros espalhados na sua entrada. Um senhor de aproximadamente oitenta anos conversava com alguém do lugar. “Dizem por aí, que nós comunistas é que somos utópicos, mas os capitalistas também o são, pois buscam coisas pelas quais nunca alcançarão. Sonham em levar uma vida como a da Xuxa, em ter aquela Ferrari ou morar naquele lugar parasidiaco. Isso não é uma utopia às avessas?”, diz. Paro, olho, finjo não perceber o que ouço, escolho um livro num dos montes na porta, escorrendo pela calçada e entro.

Espero a conversa terminar, pois me era das mais saborosas e com o tal livro na mão pergunto pelo preço. “Esse você pegou ali na porta, não? Não está à venda, faz parte de minha biblioteca particular. Comprei ainda a pouco e não tive tempo de guardar. Procure outro título”, me diz. Peço permissão para circular pelo local e daí por diante me perco na conferência de algo mais do que revelador para um simples desbravador de livros. Havia naquele espaço uma imensa concentração de títulos com a temática potiguar e espalhados por todos os lugares, em sua maioria com o mesmo selo identificador “Sebo Vermelho”. A história do estado do Rio Grande do Norte recontada ali, junto da do cangaço, seus tipos populares, tudo revisitado pelo olhar dos vencidos. O lugar onde me encontrava pulsava ali naquele estreito, comprido, modesto e desarrumado espaço fincado como um oásis no centro da capital do estado. Encantado não parava mais de fuçar e descobrir preciosidades.


Por ali, ao reparar melhor, atendendo no lugar, somente uma pessoa. Um senhor magro e na incessante ocupação de tentar recolocar livros espalhados pela entrada do local em prateleiras. Muitos montes, alguns desmoronando. Seu nome, ABIMAEL SILVA, 51 anos e o proprietário daquela organizada bagunça. Não paro mais de lhe fazer perguntas e ele de me responder. “São 27 anos desse sebo e há 24 editando livros com a temática regional. Por aqui tem muito sebo vendendo dentre outras coisas mel de abelha, saco plástico e até gaiola de passarinho. Sebo mesmo vende livro literário e é o que faço. Livro didático nem pensar. Isso aqui é pura opção de vida e em todos os sentidos”, diz. A ficha caiu, eu já o conhecia e na sequencia ele me confirma. Havia lido sua história anos atrás na revista Carta Capital, a de um ousado editor de livros e dono de sebo. Sem querer o achei e justo na primeira porta adentrada em busca de ver livros pelas cidades por onde ando. A bagunça vista é explicada por ter retronado de feira de livros e estar tentando juntar tudo novamente no seu devido lugar, mas sei muito bem, um lugar desses nunca estará (e nem deve) estar devidamente arrumado.

Fico instigando sobre essa sua decisão, ou opção, de só vender títulos de cunho literário e ele vai me mostrando um pouco mais do quadro na cidade, não diferindo muito do restante
do país. “Livraria de tua pelo que sei existe somente uma boa, na universidade e só. Nessas de shopping, as famosas de rede, nenhum possui os livros daqui para revenda. Eles querem de 40% a 50% e acrescendo isso o preço fica caro demais, praticamente inviável dentro da proposta que tenho. Não tenho escolha, busco lugares alternativos para revendê-los, desde bares, restaurantes, festas, eventos e até em motéis”, conta. Quando demonstro espanto com o negócio de vender livros em motéis, esboça um sorriso e diz: “Tendo uma temática mais erótica e possível e aí vou lá sem nenhum problema”.

As pessoas entram e saem e vou ouvindo trechos de sua trajetória, entrecortadas nos permitidos intervalos. Sua história não havia começado com livros. Durante bom tempo trabalhou numa loja de discos, uma das mais movimentadas da cidade, depois foi ser bancário. Quando demitido por causa de uma greve, a partir daí, saco já um tanto cheio de observar as iniquidades da vida, junta seu acervo pessoal e enfia a cara nesse negócio a transformar sua vida. “A coisa foi dando tão certo que não parei mais. Já sabia da deficiência de publicações regionalizadas e resolvi aliar o funcionamento do sebo com mais essa ideia, a de editar livros. Faço desde o início, tudo com meus próprios recursos. Nunca recebi nenhum tipo de incentivo, quer municipal, estadual ou federal. Consegui me virar sem nada disso. Isso aqui sobrevive graças ao meu esforço pessoal e a de um grupo de amigos que entende onde quero chegar e não me deixa mais parar”, diz sem parar de guardar livros.

A Sebo Vermelho é dele, ali sua sede, seu reconhecido porto de ancoragem. Conseguiu o impressionante feito de já ter lançado 410 títulos e um pouco dessa ousada história está contada num blog, owww.sebovermelhoedicoes.blogspot.com, alimentado por um amigo, uma vez que Abimael ainda faz parte dos avessos ao computador (“estou ainda tentando sair da fase da máquina de escrever”, me diz desviando o olhar para uma à sua frente). Fico mais do que espantado com a versatilidade e o questiono sobre as tiragens. “São todas pequenas, dificilmente cada livro ultrapassa 300 páginas. Nos já impressos tem de tudo um pouco, desde gente em busca de um espaço não existente no mercado editorial daqui, nem em lugar nenhum, como as republicações de antológicos livros desaparecidos e esquecidos ao longo do tempo”. Daí, para exemplificar tudo saca de uma das estantes, o “Aspectos Norte-Riograndenses – Dados e Informações”, do Domingos Barros e me presenteia. Aceito lisonjeado e durante sua dedicatória me diz: “Veja só, esse foi baseado no texto de uma conferência realizado no Rio de Janeiro em 1908, quando cada estado fez ali uma apresentação numa exposição, a de Riquezas Naturais e Econômicas do Brasil. Essa a participação daqui. Mostrei como era o RN cem anos trás com a republicação”.

Outra coisa a impressionar o mais atento é a apresentação de cada publicação, tendo todas belas capas e um formato pouco menor que os normais tamanhos dos livros. “Tenho ótimos e duradouros parceiros. Um amigo faz o design gráfico, outro bola as capas e outro imprime o miolo. O projeto é cultural e o objetivo é com o dinheiro da venda de um livro fazer outro. A coisa mais importante nesse processo todo é isso”, resumindo aí como sobrevive sua editora e, consequentemente, sua vida. Não paro que ir destrinchando muitas outras curiosidades e ele, sempre simpático, parece ter gostado pelo inusitado do que ali ocorria. Fico intrigado com aquela dedicação quase que exclusiva para o envolvente negócio. “Fui casado por vários anos, hoje não mais. Ela é uma baita de uma parceira, me dou muito bem com ela, mas vejo que a dedicação atual é sim, muito mais envolvente que a de quando casado. Abro diariamente das 9 às 11h30 e das 14h30 às 17h e no mais faço outras coisas”, diz. Vi tudo, casou mesmo com o universo literário à sua volta, algo meio que indissolúvel, “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença...”.

Necessitando fazer algo em outros horários, não pensa duas vezes, abaixa as portas e parte. Meses atrás participou de uma feira literária em Pipa, um aglutinador lugar nas cercanias de Natal, espécie de Búzios potiguar e sempre que pode está em outros variados eventos, convidado que é para idas e vindas livrescas. Nisso adentra o sebo algumas meninas, não mais que treze anos cada. Uma delas, a mais interessada no que enxerga à sua volta, pergunta sobre Nietzsche e ele informa no momento não ter nada. Ela não desiste, insiste e pede pelo Grande Gabsty, do Scott Fitzgerald. Ele vai bem lá no fundo do corredor e volta em instantes com uma edição de bolso, entrega e diz o preço: “É oito, mas para você vou fazer por cinco”. Na saída do grupo, após ouvirmos dela o gosto pela leitura, pergunto do desconto e ouço como resposta: “Fiz de propósito. Isso visto aqui é o que ainda salva o mundo da clonada mesmice dos tempos atuais. Dentre tanta coisa ruim, sempre existe algo nos mostrando que nem tudo está devidamente perdido”.

Abimael deixa meio que claro a existência ali dos livros colocados para revenda e os seus, ditos invendáveis. “Em minha casa não cabe mais nada, daí estou reunindo tudo numa sala aqui mesmo no centro. São aqueles que não consigo me separar e junto deles essa crescente produção independente ocupando também grande espaço. Até 2003, quando estive no programa do Jô, era o único sebista produzindo livros. Naquela época já passava de cem e não parei mais”, conta. Nisso adentra a loja um professor universitário gaúcho, radicado há alguns anos em Natal e chegando até ali por indicação, algo sobre o que todo mundo ouve na região do sebo e num dia a necessidade de conhecer pessoalmente e não só matar a curiosidade, mas conferir se é mesmo verdade ou pura lenda o espalhado por aí. Veio para conversar, supostamente apresentar algum ousado projeto e eu ali empatando a conversação. Ele fica a fuçar algo nas instigantes prateleiras enquanto terminamos a conversa.

Pago alguns CDs com muito da música local (“uma MPB quase não sentida pelas ondas do rádio e TVs locais, mas pulsando e atuante”, me diz), sou convidado para um encontro etílico gastronômico literário no próximo sábado e aproveitamos a presença do gaúcho para lhe pedir fotos minhas junto do mais rico (em quantidade de publicações) editor potiguar de toda a história potiguar. Não consigo me segurar e antes da despedida lhe tasco um rasgado elogio e lhe afirmo não mais precisar conhecer nenhum outro sebo ou livraria na cidade, pois havia dado de cara com o melhor de todos. Sorri e ainda faz questão de me acompanhar até na esquina, tudo para apontar o caminho mais fácil para chegar a alguns prédios históricos naquela região. Com um forte abraço nos despedimos e ainda na esquina, olhando para trás me dou conta que aquela fachada vermelha incrustada no meio de tantos outros pontos comerciais não possui nenhuma identificação externa e para chegar ali, só mesmo sabendo do que se quer ou como eu, entrando por acaso.

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