terça-feira, 23 de dezembro de 2014

OS QUE FAZEM FALTA e OS QUE SOBRARAM (67)


UM CONTO REAL DE FIM DE ANO - CHEGA O NATAL AOS MUITOS “REGINALDOS”...*
*Henrique Perazzi de Aquino – Especial para o JC (publicado edição de hoje, 23/12/2014, na página 7, com fotos de Douglas Reis - na última foto junto com o Reginaldo e fotografado por mim, cruzamento da Nações com a Nuno).

A história do Reginaldo não difere muito da de tantos outros. Com a proximidade do Natal e da passagem de ano, estas afloram e são mais perceptíveis a todos. Reginaldo Campanholli da Silva, 43 anos, é mais um dos que diariamente suam muito para não descer um dos últimos degraus na escala social e ir morar nas ruas. Está andando na corda bamba. Sabe disso e redobra todas suas atenções para o que faz, numa insana tentativa de conseguir o mínimo para moradia com alguma dignidade. Sabe que de onde está para a rua é só um passo e o retorno algo muito mais doloroso. Outras histórias como essas fizeram parte do Caderno JC nos Bairros, “Sonhos pelo Caminho”, neste domingo.

O paulistano Reginaldo passa boa parte dos dias da semana vendendo algo nos sinais de trânsito de Bauru. E, conseguido um mínimo calculado pelas suas necessidades, é a certeza de ter onde dormir. Vende de tudo, menos drogas. Nos últimos tempos tem se concentrado em sonhos, água de coco e paçoquinha de amendoim. É a sua rotina. Precisa diariamente fazer o exato dinheiro para pagar a pensão onde mora. Fica na rua Nóbile de Piero, Centro da cidade, custando R$ 15,00 a diária. Precisa ainda das duas refeições do dia, R$ 5,00 cada, e também guardar o suficiente para comprar a mercadoria a ser revendida no dia seguinte.

Não conseguindo juntar o suficiente, como já ocorreu várias vezes, se vê diante de um baita problema. Primeiro tem que convencer a dona da pensão, onde deposita suas coisas durante o dia e a noite ocupa um das beliches, a dobrar a diária. No dia seguinte, se vê obrigado a conseguir tudo duplicado. O mesmo ocorre com seus fornecedores, o dos doces e demais mercadorias. “Até se consegue fazer fiado, mas por causa de uns que não pagam direito, todos pagam”, diz.

E, se não conseguiu o valor hoje, como fazer para conseguir ele dobrado amanhã? “Essa é minha vida. Não posso deixar de estar focado no hoje e cumprir minha meta”, conta.

Nos sinais
Por esses dias, ele marca presença em sinaleiras variadas. Começa o dia com algumas próximas de onde dorme, bem no Centro da cidade, depois vai descendo e aporta finalmente em seu antigo ponto, o do cruzamento das avenidas Nações Unidas com Nuno. Ali, o ex-palhaço (leia mais abaixo) vendeu muitas revistas tempos atrás e, nesses últimos tempos, vende o que aparece pela frente. Sua situação poderia ser melhor, se aquela imensidão de carros estivesse somente à sua mercê, mas a concorrência é grande. Na parada no sinal, os motoristas se deparam com entregadores de panfletos, listas telefônicas, lavadores de painéis, pedintes e até os de um algo mais. Reginaldo é somente mais um, e assim como tantos outros, possui uma meta a ser alcançada até o final do dia. Tudo para não dormir na rua.

Um drama de muitos
O drama de Reginaldo é o de muitos outros. “Hoje, consegui essa caixa de paçoca, mas não está fácil, o sol está muito forte e tem muita gente aqui”, desabafa.

Sai de banho tomado e um ralo café, sempre às pressas. E, dá-lhe labuta. Os carros param. Ele é audaz, precisa ser rápido, sabe cronometrar os minutos. Chega com um jeito meio tímido e com a caixa à frente, com todas as paçocas lacradas num plástico, vai de carro em carro. De um deles, alguém grita: “Oh, amigo, ainda nessa vida?”. Sim, muitos o reconhecem, sabe ser gente boa, mas ele também sabe, alguns o tentaram ajudar, mas, se nada partir dele mesmo, nunca sairá desse círculo vicioso.

Seu desabafo mais sentido, feito enquanto muitos lotam as ruas centrais em busca de presentes, outros quitando contas, bebericando, circulando de um lado para o outro, é feito num final de tarde. “Tenho que focar nisso que faço. Como posso pensar em família, em lazer, se nem me sustentar tenho conseguido? Eu não posso desistir e não me sobra mais tempo para mais nada. Eu queria mesmo é um emprego, queria poder trabalhar num lugar fixo, ter um salário no final do mês. Queria ter um dinheiro para um sorvete com alguém num final de tarde. É só essa a ajuda que eu quero. Depois deixem comigo, que sei fazer as coisas direito”.

Natal
Daí, voltamos ao começo deste texto. Deixo o Reginaldo lá na esquina onde mal pode conversar comigo, pois seu dia ainda não está ganho. Na esquina seguinte, vejo outros e mais outros em situações idênticas. A carregadora de papéis com um carrinho medindo três vezes o seu tamanho, o menino jogando bolinha pra cima em outro sinal, o cara que me aborda dizendo que falta tanto para completar sua passagem, a senhora que pede e apresenta uma receita médica, e assim por diante. O problema do Reginaldo pode ser resolvido. Assim deveria ser. Quem puder resolve um, outros resolverão mais alguns e assim por diante. Não faltarão os sensíveis, os que chorarão lendo isso, mas ao mesmo tempo, para solucionar isso tudo, esse conjunto de problemas sociais, o algo mais precisa vir de uma ação coletiva, conjunta, um princípio governamental com uma nova postura.

Além dessa ajuda humanitária e individual, os natais só serão mais alegres quando o pensar coletivo for realmente levado em consideração. Por enquanto, fico eu com a imagem do Reginaldo grudada na minha retina, me olhando com aquela carinha de que talvez eu possa fazer por ele algo diferente, o algo transformador de sua vida. Eu tento, mas são tantos os Reginaldos, que nem sei por onde devo começar. Esse aqui está por aí em alguns sinais, e até onde sei, talvez hoje, dormindo num beliche lá na Nóbile de Piero. O telefone dele, que, há anos só recebe ligações, é o (14) 9970-24432.

Roupa de palhaço e paixão por trens
Reginaldo voltou para Bauru há pouco menos de três meses, vindo de uma experiência nova para ele em Jaú. Está acostumado com as andanças, tentando a sorte aqui e ali. Acredita que ela vai chegar, tanto que faz questão de insistir em permanecer na cidade. Veio para cá cerca de seis anos atrás, chegando de São Paulo por causa de um sonho. Sempre gostou muito de trens, e com os problemas agravando-se junto aos familiares, veio tentar a sorte no “maior entroncamento férreo do Interior Paulista”. Sem nenhuma qualificação profissional, o que sempre fez é exatamente o que continua fazendo. Na época, conseguiu uma roupa de palhaço e ficava nos sinais vendendo álbuns e revistas infantis.

Obteve algum sucesso, participou como ajudante em alguns Encontros Ferroviários realizados na Estação da NOB, mas sua vida pouco se alterava. Levou até quando deu, dentro de um limite estabelecido por ele mesmo: o de fazer de tudo para não morar nas ruas. Conheceu uma mulher e, com ela, foi morar em Jaú. Viveu bem, mas, por ciúme dos filhos dela, largou tudo e voltou para Bauru, e para a antiga situação. Porém, algo bem perceptível é que isso do tempo ser inexorável serve para todos. Se antes enfrentava tudo com mais disposição, hoje nem tanto. O corpo reclama, dói, mas ele finge não ver nada disso, pois sabe que não pode esmorecer, muito menos parar. O medo de morar nas ruas suplanta tudo.

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