sábado, 23 de março de 2024

DIÁRIO DE CUBA (242)


OLHOS PARA O NEIZINHO
Esse cara de costas aí nas duas fotos é um dos meu ídolos de infância. O via jogar muita bola no ARCA - Associação Reacreativa e Cultural Antarctica -, onde hoje é o supermercado Assaí, na Marcondes Salgado. Baixinho, 1m50 por aí, endiabrado, com a bola nos pés era o terror dos grandões e duros de cintura. Hoje, ele mora lá no Residencial para Idosos Vida Longa, no José Regino. Enfim, tem um bom lar pra morar, mas no encontro de hoje, disse estar a padecer de algo quase o impedindo de sair pras ruas, uma catarata lhe embaçando a vista. Pra vir de ônibus pra cidade, pede ajuda para alguém ler a placa do ônibus e tem medo de ser atropelado, principalmente pelas motos. Adora futebol, mas agora nem TV vê mais, apenas ouve, como se fosse rádio. Nei continua do mesmo jeito, malemolente dos pés à cabeça, gente muito boa e agora, circulando pelas ruas com todo cuidado do mundo. Sua aposentadoria não suporta o luxo de pagar por uma cirurgia e daí, por onde ande, conta seu drama e fica a espera de um milagre. O milagre, enxergo assim, é um pessoal que o conhece se juntar, levá-lo para um atendimento num oftalmo e diante de uma cifra, montar um plano, um projeto, uma rifa, uma vaquinha e devolvê-lo pra vida. Visão é tudo e eu sou daqueles que não suporto ver gente como o Neizinho de cabeça baixa pelas ruas. Ele, ou melhor, ninguém merece algo assim em sua idade.

OLHOS PARA UM POETA PORTUGUÊS E ALGUÉM DO BRASIL A LHE DAR A DEVIDA ATENÇÃO
O POETA NUNO DEIXOU DE SE COMUNICAR COM JEFERSON ASSIM DO NADA E QUANDO ESTE FOI VERIFICAR DOS MOTIVOS, A SURPRESA
Conto a história, desde o princípio, de como vim a conhecer algo do poeta português NUNO JÚDICE. Acho lindo - e muito doloroso - como tudo se deu, daí resolvi contar mais uma de minhas histórias, entrelaçamento humano entre pessoas que se gostam, se unem e mantém laços de afeto ao longo da vida.

Recebo ligação do amigo Jeferson Barbosa da Silva, bauruense exilado em Natal RN. O motivo era me contar de sua tristeza pelo passamento do amigo poeta. Mantinha troca de correspondência habitual com ele, quase diárias e ele respondendo a todas do outro lado do oceano. Na semana passada nota algo estranho, pois por três dias seguidos nenhuma resposta. Intrigado, questiona pelo e-mail e nada. Resolve acionar o google e daí decifra a charada, Nuno havia falecido. Havia se comunicado até seu último dia de vida. Jeferson fica tocado, pois este o havia respondido até seu último suspiro e quando se deu a interrupção, este havia partido. Uma história desses dolorosos rompimentos de escritas, contatos e troca de correspondência. A morte é abrupta e lacra tudo. Jeferson desabafa comigo e a partir daí, resolvo relatar o ocorrido e apresentar Nuno, para quem, como eu, ainda não o conhecia.

“Conheci o poeta Nuno Júdice lendo os poemas de seu primeiro livro, "A Noção de Poema", 1972, que começa num poema intitulado "Apogeu da Gramática", que assim se encerra”, me escreve Jeferson:
Ordenarás a extensa nomenclatura da imagem.
Não te detenhas no estuário reversível da metáfora!
Cumpre o espírito emissário das hierarquias outonais!
Regressam já as aves indicativas do idioma.
Elas dizem: "Está próxima."
Ei-la, a cidade.

“Ficamos amigos. Em 2016 visitei-o em Lisboa. Nuno Júdice foi um vitorioso reconhecido. Criador de extensa e riquíssima obra. Militante das boas causas culturais. Guerreiro da Causa Lusófona, cansou de viajar para os países de outros continentes resgatando a originalidade e a grandeza da Língua Portuguesa! Dirigiu por muito anos a excelente Revista Colóquio Letras. Parte cedíssimo. Quanta coisa boa certamente fica em sua escrivaninha, à espera. Quem virá para continuar sua grande luta? Quem?”, questiona Jeferson.

Recebo dele algo sobre Nuno, pertinente ao final do relato: “A Universidade de Lisboa lamenta o falecimento do ensaísta, poeta, ficcionista e Professor Nuno Júdice, alumnus da Universidade de Lisboa, licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras. Nuno Júdice (1949 - 2024). Ensaísta, poeta, ficcionista e Professor, Nuno Júdice, alumnus da ULisboa, formou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa. Foi Professor Jubilado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou em 1989, na área de Literaturas Românicas Comparadas, com uma tese sobre Literatura Medieval O Espaço do Conto no Texto Medieval (Vega, 1991).

O seu primeiro livro de poesia, “A Noção de Poema”, foi publicado em 1972, após o qual se seguiu a publicação de inúmeras obras de Poesia, Ficção e Ensaio. Colaborou em ações de divulgação da cultura portuguesa no estrangeiro, comissariando a área de Literatura da Exposição Universal de Sevilha, em 1992, e a Feira do Livro de Frankfurt dedicada a Portugal em 1997. Organizou a Primeira Semana Europeia de Poesia quando Lisboa foi Capital Europeia da Cultura em 1994. Foi Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal e Diretor do Instituto Camões em Paris desde 1997 até fevereiro de 2004. Manteve uma atividade permanente de divulgação da cultura portuguesa, tendo acompanhado o processo que levou Portugal a ser o país tema no Salon du Livre de Paris em 2000. Membro da redação da revista O Tempo e o Modo entre 1969 e 1974 e diretor, entre 1996 e 1999 da revista de poesia Tabacaria, da Casa Fernando Pessoa. Foi ainda curador para a área cultural da Fundação José Saramago, criada em 2008. Em janeiro de 2009 assumiu as funções de diretor da revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian e, sob a sua direção, a revista retoma um ritmo regular com uma periodicidade quadrimestral. Ao longo da carreira literária, Nuno Júdice foi distinguido com diversos prémios, entre os quais o Prémio Ibero-Americano Rainha Sofia em 2013, o Prémio Pen Clube e o Prémio D. Dinis da Fundação Casa de Mateus. Recebeu, em Portugal, o grau de Oficial da Ordem de Santiago e Espada e, em França, o de Officier des Arts et des Lettres”.

É muito triste a gente passar pela vida e não tomar conhecimento da passagem junto de nós de alguém como Nuno Júdice. Espero ter reparado, minha até agora ignorância. Merece não só o escrito, como garimpagem em busca de algo mais de sua vasta obra. Gosto muito da sensibilidade de pessoas como o querido Jeferson, hoje exilado lá no Nordeste, procurando – sem conseguir – se afastar das coisas deste torrão bauruense, motivo de seus diários contatos para comigo. Eis a última homenagem do amigo para com o que se foi: https://youtu.be/ZSTY8LekVdE?si=bKDIjJpgdBOjyAcG.

Deixo a pergunta no ar sobre a quase diária troca de e-mails entre eu e Jeferson: quando interromperemos o estreito relacionamento, troca de afagos, sugestões, dicas e conversações sobre temas que nos tocam profundamente? Será quando um perceber que o outro não mais responde e assim se foi para sempre...

2 comentários:

Garoeiro disse...

HPA especula ao final:
"Deixo a pergunta no ar: será quando um perceber que o outro não mais responde e assim se foi para sempre?"
Certamente e infelizmente, Henrique, é, sim, assim que será.
Seu renhido resgate dos desimportantes, que o diga ...
E, então? Será que tudo o que que foi feito é para dar em nada?
Fica a obra, Henrique. As obras, ficam, eis que eles não podem matá-las de esquecimento, de uma hora para a outra, como no corte abrupto dos e-mails.
As obras ficam e não podem ser exterminadas.
Viva, o futuro!
Jeferson

Mafuá do HPA disse...

Penso muito nisso. Nesse abrupto rompimento para nunca mais. Hoje mesmo, estou aqui conseguindo me reorganizar num novo Mafuá e diante de um dilema: teria condições físicas de desfrutar deste novo local? Meu sonho é que ao terminar de organizar tudo deixarei isso aqui. E daí? O que será feito de tudo o que juntamos uma vida inteira?
Henrique, agora no Mafuá Dois